Com efeito, a Quaresma é o início da celebração do “Grande Sacramento Pascal”. Foi o Papa Leão Magno quem o indicou sugestivamente como Magnum Paschale Sacramentum, ele que foi definido como o grande doutor do Mistério Pascal. Por seu significado e eficácia espiritual, a Santa Páscoa é a solenidade que ultrapassa todas as outras do ano litúrgico. Seu objetivo, de fato, não diz respeito apenas a um aspecto ou momento limitado do grande plano da salvação divina, mas o abrange em sua plenitude. Por isso, na grande vigília do Sábado Santo, a liturgia escolheu, entre as páginas da Bíblia, as leituras que recordam e celebram: a criação do mundo; a eleição e as promessas a Abraão; a criação do povo de Israel; as profecias; os ritos do sacerdócio judaico. Esses elementos e fatos constituíram a preparação remota e imediata do grande acontecimento da nossa salvação, que se deu com: a encarnação, o nascimento, a paixão, a morte e a ressurreição do Filho de Deus, Jesus Cristo.
A preparação para a Páscoa
A Páscoa expressa a plenitude de toda a ação salvífica. É por isso que a cada ano se realiza uma renovação que santifica e purifica a Igreja mais do que todas as outras celebrações do ano cristão. Por isso, a Páscoa exige uma preparação espiritual e ascética especial, maior do que a que se dedica a qualquer outra festa ou solenidade. Por sua vez, a celebração espiritual da Quaresma visa preparar, nos fiéis e em toda a comunidade eclesial, a atitude que lhes permita celebrar e receber, em toda a sua plenitude, a graça do sacramento pascal (Paschale sacramentum).
Além do Papa Leão Magno, também Santo Agostinho, em seu comentário ao Salmo 148, contempla em termos muito profundos o mistério da Páscoa e a preparação espiritual para ela (Quaresma). A Quaresma descreve a história da nossa vocação cristã em duas fases. A primeira fase diz respeito sobretudo ao presente, isto é, à nossa vida terrena, sujeita a todas as dificuldades, tentações e tribulações. A segunda fase diz respeito sobretudo a nossa vida futura que passaremos na eternidade, na casa do Pai, em seu reino de glória e felicidade que nunca terá fim. A Igreja, na sua fé, estabeleceu dois tempos para poder celebrar a Páscoa, um antes e um depois.
O tempo que antecede a Páscoa é a Quaresma, que representa o caminho de nossa vida terrena, com suas sombras cotidianas, os riscos, os perigos, as adversidades, os esforços, os fracassos e os sacrifícios. É um tempo de conversão, arrependimento, luta contra o mal e esperança do bem maior. Nele pedimos o perdão por meio de esmola, jejum e oração. O tempo após a Páscoa nos presenteia com o que agora possuímos apenas em parte e na fé, mas que viveremos plenamente no final das provações e tribulações da vida presente.
Então, iremos bendizer e glorificar para sempre, com louvor, agradecimento, exultação e aleluia o Senhor Vitorioso e Ressuscitado. A paixão e a morte de Cristo representam nossa vida presente. Sua gloriosa e luminosa Ressurreição representa aquela vida que já possuímos parcialmente e que será para sempre plenitude de bem-aventurança, luz, paz e glória divina.
A Quaresma é o “sinal sacramental” da conversão contínua a que todo cristão é chamado para que alcance o “estado de adultos, à estatura do Cristo em sua plenitude” (Ef 4,13).
Uma vez convertidos, devemos nos converter novamente. A conversão se expressa desde o início com uma fé total e radical que não coloca limites nem obstáculos ao dom de Deus. Ao mesmo tempo, porém, determina um processo dinâmico e permanente que dura toda a vida, exigindo uma passagem contínua da vida segundo a carne e da vida segundo o Espírito.
Devemos estar cientes da precariedade da vida nova em nós, sempre necessitada de uma ajuda especial de Deus. Esta humilde consciência constitui o fundamento permanente do nosso caminho: o primeiro passo é a humildade; o segundo passo ainda é humildade; o terceiro permanece a humildade; e quanto mais que você peça, darei sempre a mesma resposta: a humildade. Devemos ainda nos considerar longe da meta e progredir em direção a ela. “Enfim, irmãos, alegrai-vos, procurai a perfeição, encorajai-vos, tende um mesmo pensar, viver em paz” (2Cor 13,11). A caridade quer crescer. Quem renuncia deliberadamente ao progresso não tem caridade; ainda é escravo do pecado. O progresso consiste então em tentar evitar todo o pecado e em fazer o bem com motivações cada vez mais puras.
Na antiga Quaresma, a Igreja vivia e acompanhava dois caminhos paralelos:
- O caminho de iniciação para os catecúmenos, com suas etapas de escrutínios, exorcismos, entrega do Credo e do Pai Nosso. Tinha como meta litúrgica a noite pascal, com a celebração dos três sacramentos da iniciação cristã: BATISMO, CONFIRMAÇÃO, EUCARISTIA. Com a reforma litúrgica, desejada pelo Vaticano II, todos nós revivemos este caminho, no ano litúrgico A, com os trechos do Evangelho que apresentam os relatos da Samaritana, do cego de nascença e da ressurreição de Lázaro;
- O caminho de conversão para os penitentes, que tinha início na quarta-feira “capite quadrigesimae”, com a imposição das cinzas e do cilício, tinha como meta litúrgica a Quinta-feira Santa, com o rito da RECONCILIAÇÃO presidido pelo Bispo. Em algumas comunidades se fazia o “lava-pés”, segundo a leitura de Jo 13,10: “Quem tomou banho (batismo), não precisa lavar senão os pés (reconciliação), pois está limpo”. Revivemos este caminho liturgicamente no ano C, com as passagens do Evangelho do Filho Pródigo e da mulher adúltera.
Depois, há o caminho da Cruz, que diz respeito a todos os discípulos e tem como mata litúrgica a Sexta-Feira Santa. É explorado por nós no ano litúrgico B com os símbolos da serpente de bronze e do grão de trigo que morre.
No caminho quaresmal dos CATECÚMENOS e dos PENITENTES (anos A e C), está envolvida toda a IGREJA, mãe que gera ou regenera seus filhos “não sem dor” (ano B).
As leituras da Quaresma
Três itinerários podem ser vislumbrados:
- uma Quaresma batismal (ano A);
- uma Quaresma Cristocêntrica (ano B);
- uma Quaresma penitencial (ano C).
O ciclo A (aquele com o caráter batismal mais forte) pode ser seguido todos os anos de acordo com as necessidades pastorais de cada comunidade.
Obras quaresmais:
- Oração, para uma adequada relação com DEUS.
- Esmola, para uma justa relação com o PRÓXIMO.
- Jejum, para uma correta relação COSIGO MESMO. Jejuamos para dar esmolas e assim tornar a oração aceitável e eficaz.
A experiência em outras tradições
O Islã adquiriu uma realidade semelhante à nossa Quaresma: é o mês de RAMADAN, com jejum diurno, como um rito coletivo da comunidade muçulmana. Neste mês, as orações são duplicadas. Lembrando que só o Senhor é o Provedor, participamos da fome e da sede dos pobres.
O Judaísmo conhece um período particular de purificação: são os 10 dias que vão do Ano Novo Judaico ao Dia da Expiação (Kippur).
Simbolismo Bíblico da Quaresma
40 dias (que na verdade são 46, dos quais 6 domingos são retirados como pascoas semanais) de dilúvio (Gn 7,4); de Moisés no Sinai, após o pecado do Povo, (Ex 34,28); de Elias no deserto (1 Reis 19,8); de Jonas em Nínive, (Gn 3,4); de Jesus no deserto das tentações, (Mt 4,1-11). Este período refere-se aos 40 anos do Êxodo, no DESERTO.
“A Igreja se une, a cada ano, durante os quarenta dias da grande Quaresma, ao mistério de Jesus no deserto” (CIC 540).
Por isso, o cristão é chamado a participar da escolha fundamental de Jesus. Com as promessas batismais, se compromete a rejeitar as mesmas tentações de bem-estar, sucesso e do poder (cf. Mt 4,1-11). A Igreja o recorda todos os anos com a celebração da Quaresma. É um caminho de essencialidade, em que a adesão a Deus nasce das opções de sacrifício.
A Quaresma deve ser para o cristão o que foi para o seu Senhor: um DESERTO em que ressoa a PALAVRA que purifica e motiva a ascese, que nos ilumina e nos abre à mística.
O Espírito Santo, que conduziu Jesus ao deserto (Lc 4,1), guia a Igreja neste período litúrgico, para que todos os seus filhos, com a Páscoa de Cristo, celebrem também o seu renascimento e a sua plena assimilação ao Ressuscitado.
Esta ação purificadora do Espírito é sinergia que supõe nosso envolvimento ativo na ASCESE, em todos os seus vários aspectos de:
- abnegação, que é renúncia aos nossos egoísmos;
- mortificação, como nossa participação na morte de Cristo, fazendo morrer em nós o que pertence ao velho;
- jejum de tudo o que é supérfluo e nos condiciona;
- silêncio interior e exterior, para dar lugar à Palavra;
- humildade, que é a verdade do nosso ser: somos feitos de barro (húmus).
Colaborando assim com o Espírito Santo, criaremos em nós aquele DESERTO em que Deus poderá falar aos nossos corações (Os 2,16-25), para educar-nos ao Absoluto, despojando-nos dos nossos ídolos (Dt 32,10-12).
Assim, o “deserto” de lugar de tentação se tornará o lugar de nosso compromisso com Deus (Jr 2, 2). Se quisermos, nossa cidade também pode ser o “deserto” onde Deus nos encontra (Deus habita na cidade). “Magna civitas, magna solitudo” já dizia Bacon.
Perguntas para aprofundar:
Que elementos e fatos constituíram a preparação remota e imediata do grande evento da nossa salvação: encarnação, nascimento, paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo, o Filho de Deus? Que relação as páginas da Bíblia têm com a Páscoa, que celebram: a criação do mundo; eleição e promessas a Abraão; criação do povo de Israel; profecias e ritos do sacerdócio judaico?
O que a época anterior e a posterior à Páscoa nos ensinam?