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Testemunhas da Ação do Espírito: Acompanhamento Espiritual e Vida Consagrada

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Padre Alfredo Sampaio Costa SJ

Neste mês vocacional, queremos trazer uma reflexão sobre a Vida Religiosa (VR), que sempre teve em alta estima o acompanhamento espiritual (AE). Queremos resgatar essa dimensão tão fundamental e sinalizar alguns percursos a serem trilhados na tentativa de sintonizarmos com os apelos que o Espírito faz aos consagrados e consagradas no mundo atual. Nosso enfoque será nos determos na consideração de quais aspectos (dimensões, situações, horizontes, processos…) deveremos ter em consideração no Acompanhamento espiritual específico para pessoas consagradas.

 

Acompanhar o Espírito: as dinâmicas da vida espiritual

O Acompanhante espiritual é um buscador do Espírito, sempre ao seu encalço, sem nunca desanimar.  Sua tarefa será identificar, na experiência espiritual dos seus acompanhados, as vias do Espírito.

 

Domenico Sorrentino[1] descreve quatro importantes dinâmicas da vida espiritual que não podem escapar ao olhar atento do mestre espiritual. Comentamos estes processos, aplicando-as ao caso específico da Vida Religiosa.

Primeiro dinamismo: Natureza-Graça: Toda experiência espiritual é a experiência de uma pessoa humana na sua realidade concreta, aberta ao diálogo com Deus; na outra extremidade do polo é evocada a ação de Deus que intervém e interage com a pessoa consagrada atraindo-a, iluminando-a, movendo-a, plasmando-a, habitando-a. A análise de cada experiência espiritual deve partir do vasto campo do que podemos considerar como a “natureza” da pessoa consagrada que faz a experiência de Deus[2].

O chamado à Vida Religiosa se insere nesse contexto, e é essa história de Aliança que somos chamamos a contemplar e testemunhar como acompanhantes espirituais.

 

 Segundo dinamismo: Palavra / Espírito – Igreja: As intervenções de Deus na vida da pessoa consagrada exigem um atento discernimento a ser operado mediante o confronto com a Revelação e com a ajuda da comunidade eclesial. Os consagrados existem estruturalmente como membros de uma família religiosa, inseridos na Igreja e tudo o que acontece na relação deles com Deus implica e toca sempre também a comunidade religiosa e a Igreja como tal.

O acompanhamento espiritual deverá considerar o diálogo entre Palavra e Espírito de Deus com a pessoa consagrada considerada no contexto das suas relações eclesiais: aquelas mais invisíveis e íntimas, que constituem o mistério mesmo da Igreja enquanto povo habitado pela Trindade, mas também até as faces mais visíveis que a Igreja assume na sua organização e na sua vida: liturgia, hierarquia, comunidades articuladas nas suas várias expressões, da família à paróquia, famílias religiosas e até mesmo incluindo a Igreja “celeste”, experimentada na “comunhão dos santos”.

 

Terceiro dinamismo: história- eschaton: Aqui a experiência cristã é vista no diálogo que ela instaura com a realidade da história, através da memória do passado, a valorização do presente e o impulso rumo ao futuro. O consagrado vive em tensão entre o “já” e do “ainda não”, sempre a caminho e tendo que realizar já na sua existência concreta o que espera um dia viver em plenitude.

A dimensão da história tal como é vivida e experimentada pelo consagrado – desde o nascimento e desenvolvimento do carisma originário até sua expressão em situações históricas mutáveis – é muito importante que seja acompanhada espiritualmente.

 

Quarto dinamismo: Dinâmica unitiva: É o coração da experiência espiritual cristã, para onde convergem as outras perspectivas. A relação dialogal com Deus-Trindade é a expressão mesma da espiritualidade cristã. A análise experiencial realizada na perspectiva desse eixo faz emergir, antes de mais nada, o rosto de Deus, assim como ele progressivamente se manifesta: “Quem me ama será amado pelo meu Pai e também eu o amarei e me manifestarei a ele” (Jo 14,21).

É o aspecto de manifestação (epifania) da experiência espiritual, objeto por excelência do AE!

 

  1. Verificar como os consagrados e consagradas vivem a essência da VR

Andrés Torres Queiruga escreve que nenhuma proposta que busque definir a VR mediante um tipo de nota que, direta ou indiretamente, implique superioridade ou excelência sobre os demais modos de vida cristã, por mais dissimulada que seja, segue um bom caminho[3].

É preciso no acompanhamento espiritual saber identificar qual a imagem de VR que o consagrado/a tem, e considerar se é verdadeira ou deformada. Daí virá a tarefa de reconduzi-lo/a a retomar o que constitui verdadeiramente a essência da VR: o Primado do Absoluto.

Desde o momento da sua consagração, o religioso vive em Deus e por Deus. Tudo o que faz é motivado pelo desejo de amar a Deus em formas concretas de vida. Tudo na sua vida é dirigido a Deus em culto e adoração.

O AE deveria checar até que ponto vai o nosso Amor por Cristo e o nosso entusiasmo pelo seu Seguimento. Nós consagrados estamos verdadeiramente apaixonados por Deus?

Mostramos isso sendo homens e mulheres de oração e contemplação. Por meio da oração pessoal, litúrgica e comunitária, mostramos que celebramos o Sagrado. O atual estilo geral de profissão dos três votos de castidade, pobreza e obediência não diz nada mais para o homem e a mulher dos nossos dias. É fundamental refundar a maneira de assumir e viver cotidianamente esses três compromissos. Hoje, numa sociedade que carrega a marca da pós-modernidade, é muito importante viver uma castidade que se faz alegria profunda, uma pobreza que se traduz em solidariedade e uma obediência que é expressão de profundo respeito pela dignidade da pessoa humana[4].

A Vida em comunidade é parte integrante do ser religioso. No AE é muito importante verificar como ela está sendo vivida e qual o lugar que ela ocupa na totalidade da existência do consagrado ou consagrada.

Podemos partir de uma tentativa de definição da vida comunitária:

A vida comunitária religiosa é, ou melhor, quer ser uma realização histórica da comunhão trinitária, vivida em fraternidade livre, e a serviço do homem e do mundo.

  1. “Quer ser”: Está sempre em processo de realizar sua finalidade. Nunca chegará até um estado de perfeição. Sempre será imperfeita. Nesse processo, haverá momentos fortes de crescimento, mas também momentos fortes de conflitos, decepções e até infidelidades. Esse “querer ser” exige um acolhimento radical de nossas realidades humanas na comunidade e um olhar realista para o futuro, na esperança de sermos capazes de superar as dificuldades.

No AE é necessário ajudar o consagrado/a a não desanimar diante das contradições e dificuldades da vida em comum, mantendo vivo o desejo de realizar o seu ideal[5].

  1. “Uma realização histórica”: A graça acontece no presente – no aqui e agora em que estou vivendo minha vida comunitária. Há muito perigo de rejeitarmos o presente e cairmos no saudosismo e no futurismo.

O Acompanhante espiritual deve estar atendo quando isso acontecer, alertando o acompanhado e ajudando-o a perceber como a graça vai se encarnando na sua história de vida pessoal, comunitária, institucional, eclesial.

 

  1. “Da comunhão trinitária”: A finalidade de vivermos juntos é tentar realizar entre nós o mesmo amor que existe entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

O AE deverá estar atento para verificar o grau de crescimento no Amor, na saída de si. Nosso amor como consagrados tem sido um amor superficial, sentimental, interessado, egocêntrico ou amor criativo e generoso, voltado para fora, que dá espaço para criar a vida e que deixa nosso irmão viver, crescer e desenvolver-se, Amor que incentiva o outro a viver sua consagração cada vez mais livre e alegremente?

  1. “Vivida em fraternidade livre”: Não escolhemos com quem conviver na busca de viver o Primado do Absoluto. Ninguém pode forçar a fraternidade a acontecer. Tem que haver uma opção livre e adulta acolhendo quem Deus coloca em nossa vida, para viver conosco em fraternidade.

Aferir no AE o grau de liberdade e aceitação que nós consagrados temos na vivência de comunidade!

  1. “A serviço do homem e do mundo”: Esse último ponto é o que deveríamos perseguir na nossa vida espiritual: é o momento “para fora” da comunidade religiosa. Na tentativa de imitar o amor trinitário, a vida religiosa precisa sair de si para criar, para servir, para amar. Não pode se fechar em si mesma.

O Acompanhante precisa estar atento a manter esse olhar aberto para fora!

 

Conclusão :  Conduzidos pelo Espírito para Servir na alegria, na pobreza, em comunidade

Na alegria: Não poderia ser de outro modo, já que Evangelho é Boa-Notícia, é comunicação da Boa Notícia. O Papa escreve ao iniciar a Evangelii Gaudium: “Escrevo essa exortação para convidar-vos a uma nova etapa evangelizadora marcada pela alegria” (EG 1). Devemos ser capazes de viver a alegria em meio às pequenas coisas da vida cotidiana.  Mais do que estratégias para um crescimento mercantil, deveríamos buscar linhas de saúde para uma vida estável, serena e feliz.

Na pobreza: Descobrimos a falta de um acompanhamento pastoral aos mais pobres, a ausência de uma acolhida cordial em nossas instituições da fé em um cenário religioso plural. Essa percepção nos leva a deslocar os nossos centros de interesse, sairmos do centro para as periferias, redistribuir as forças não movidos pelo desejo de salvaguardar nosso patrimônio, mas que nos conduza ali onde a voz de Deus está silenciada, não esteja ou necessite de ajuda. Um estilo de obras menores e humilde, entendendo que o que nos caracteriza não é a avassaladora força industrial, mas sim a misteriosa intensidade do sinal; que sejamos a voz do mais fraco ou de quem não fala o nosso idioma; que saibamos acompanhar as buscas sinceras que as pessoas realizam para encontrar apoio e sentido às suas vidas ( cf. EG 71)[6].

 Em comunidade: Quando segue denominando-se “comunidade” para ser, na realidade, um lugar de cuidados paliativos, um lugar de descanso, uma convivência de solteirões ou uma certa sociedade onde se partilham certos horários, podemos nos perguntar: a comunidade terá perdido o seu significado para os dias de hoje? Certamente termos que encontrar as chaves fraternas deste século XXI. O marco dos anos anteriores já não serve mais. Em tempos de profundo individualismo e ruptura com os vínculos duradouros, a essência de nosso ser comunitário se expressa pelo convencimento de que “ninguém se salva sozinho, nem como indivíduo isolado nem por suas próprias forças. Deus nos atrai, levando em conta a complexa trama de relações interpessoais que supõe a vida em uma comunidade humana” (EG 113).

Conduzidos pelo Espírito: Mais do que nunca necessitamos hoje de homens e mulheres que, a partir da sua experiência de acompanhamento, conheçam os processos onde campeia a prudência, a capacidade de compreensão, a arte de esperar, a docilidade ao Espírito (EG 171).   Não vivemos tempos para a província, nem para a história local. O coração de cada religioso é universal. Esse olhar universal e aberto não significa desconexão ou desinteresse pelo concreto. Exatamente o contrário. É o reconhecimento de Deus, por seu Espírito, no compromisso do concreto. O AE ajudará a VR nas suas diversas formas a colocar-se sempre à escuta do Espírito, como fazia Santo Inácio de Loyola, no testemunho de Jerônimo Nadal:

“Seguia o Espírito e não se adiantava a ele.

Deste modo ia sendo suavemente conduzido onde não sabia”[7].

 

Padre Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

[1] Domenico SORRENTINO, Esperienza di Dio. Un disegno di Teologia Spirituale, Cittadella Editrice, Assisi 2007, 118-122.

[2] “Natureza” implica aqui não somente os elementos constitutivos da pessoa consagrada (elementos espirituais-corporais) mas todas as características concretas que a definem na sua individualidade e relacionalidade: portanto, os dados bio-psicológicos, culturais, familiares, a inserção em um determinado contexto histórico, etc.

[3] André TORRES QUEIRUGA,  Pelo Deus do mundo. No mundo de Deus. Sobre a essência da vida religiosa. Loyola , SP 2003,13.

[4] José Lisboa M. de OLIVEIRA, Viver os votos em Tempos de Pós-Modernidade, 40.

[5] Lourenço KEARNS, A Teologia da Vida Consagrada, 34-37.

[6] Luís A. Gonzalo Díez, “La vida religiosa en operación salida…”,  20.26.

[7] Jerônimo NADAL,  Monumenta Historicae Societatis Iesu, Monumenta Nadal V, 625.

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