Luiz Carlos Sureki, SJ
“Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva…”
Algumas frases ficam gravadas na nossa memória mesmo depois de transcorridos muitos anos desde o preciso momento em que as ouvimos, como se elas teimassem em resistir ao tempo! A frase acima foi dita por um androide no filme “Blade Runner, o Caçador de Androides” (EUA, 1982, Dir. Ridley Scott). Estando prestes a morrer, o androide (Rutger Hauer) diz ao que o caçava (Harrison Ford): “Eu tenho visto coisas que vocês [humanos] não acreditariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-C cintilando na escuridão perto do Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo como lágrimas na chuva. É tempo de morrer”. Em seguida, ele, na chuva, sentado, lentamente, morre.
A reflexão que se segue é marcada pela espontaneidade. Ela não visa suscitar o pessimismo, mas antes um saudável “relativismo positivo”. “Relativismo” porque todas as atividades que fazemos, onde quer que estejamos, quer escrevendo uma reflexão como esta, quer lendo-a, nada disso tem pretensões absolutas ou eternas; tem, portanto, um caráter relativo, também chamado de contingente. Muito provavelmente virá também a “perder-se no tempo como lágrimas na chuva”! “Positivo” porque é justamente a consciência dessa nossa relatividade ou contingência que nos faz seres de esperança, que nos torna mais humildes, mais solidários, mais compassivos, mais sóbrios em relação a tudo aquilo que fazemos, mais realistas acerca da nossa autocompreensão.
A frase acima fala da fugacidade dos momentos vividos por todo e qualquer ente/ser temporal. Por mais longa, em anos, que a vida de alguém possa ser, por mais coisas que esse alguém tenha experimentado, presenciado, feito, tocado, dito, ouvido ou visto pelo mundo/universo afora, parece que o tempo acabará por engoli-las. Se houve um tempo em que eu e você não existíamos no mundo, também haverá um tempo em que eu e você não mais existiremos no mundo; e o mesmo vale para o próprio mundo! Essa finitude, que a filosofia denomina contingência, a tradição bíblica a chama de criação. “Contingente” designa, portanto, o que não é por si e desde si mesmo, e isso, em termos teológicos, equivale a ter sido criado, ou ter-vindo-a-ser por disposição alheia. Tudo o que não tem em si e por si mesmo a causa/razão de ser/existir paga tributo à temporalidade, que é o símbolo por excelência da finitude/contingência. Não por acaso, a temporalidade é um atributo da criação/criatura, não do Criador.
Não podemos pensar que o/um tempo vazio, sem qualquer ente/ser temporal, pudesse ter alguma realidade. Tal pensamento seria mera abstração do ente/ser humano existente/pensante já situado no tempo. No caso da eternidade, a impossibilidade aumenta porque o pensante não é eterno e a sua ideia de eternidade não vai muito além de uma espécie de “tempo que não passa” ou, na melhor das hipóteses, uma “presentificação” absoluta, em que o passado e o futuro são absorvidos pelo presente, o ontem e o amanhã dissolvidos no hoje, o antes e o depois diluídos na plenitude do agora.
De modo semelhante, tomamos consciência do espaço por referência a algo/ente/ser que nele está, como é o caso de nós mesmos e de tudo o mais que vemos ou percebemos ao nosso redor. Um espaço absoluto vazio é tão abstrato quanto um tempo absoluto vazio. Um espaço só é concebido por contraste a outro ou a outros espaços ou por uma oposição abstrata ao a-espacial! Ainda que o pressuposto religioso teológico-criacionista permita afirmar que há no âmbito da criação entes/seres espirituais temporais que não ocupam lugar no espaço, isso nada acrescenta ao seu status de criatura. O tempo é, na verdade, outro nome para se falar de criação.
A célebre afirmação do Papa Francisco, em Evangelii Gaudium, acerca da prioridade do tempo sobre o espaço precisa ser bem compreendida no seu contexto. “Dar prioridade ao tempo – dizia o Papa – é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos duma cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás. Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos, pelo resolver tudo no momento presente, pelo tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação” (EG, 223). Francisco está falando de um primeiro princípio para progredir na construção de um povo, e toma o “tempo” como expressão do horizonte que se abre diante de nós (EG, 222). Com efeito, o ser humano é um ser orientado para o futuro (no duplo sentido deste termo: futurum / adventus), um ser-em-processo-de-realização.
Voltemos, pois, à noção teológico-cristã de temporalidade por relação à criação. Quando o Credo Niceno-Constantinopolitano, em relação ao Credo Apostólico, acrescenta ao Criador do céu e da terra as “coisas visíveis e invisíveis”, só está reforçando que tudo o que não é o próprio Deus-Criador (eterno) é criado por Ele, é temporal, é contingente (quer ocupe determinado lugar no espaço quer não). É interessante notar que “céu e terra, coisas visíveis e invisíveis” não está diretamente denominando entes/seres particulares, mas antes significando o todo do âmbito do criado, o todo da dimensão contingente da realidade criada por Deus ex-nihilo. Esse “do nada” (ex-nihilo) é o genuíno conceito teológico de criação. Neste sentido, o ser humano nada cria (ex-nihilo), nem tampouco se vê a ele próprio como criado dessa mesma forma!
Criar o todo da dimensão contingente da realidade (céu e terra) “do nada” não é imediatamente sinônimo de criar ou ter criado cada ente/ser particular que nessa dimensão contingente criada veio a existir, vem a existir ou virá a existir, como se fosse sempre e novamente do nada! Deus não cria o ser humano do nada, mas, segundo o relato genesíaco, o modela desde a terra e, então, insufla seu espírito vivificante nele (Gn 2,7). A teologia da criação precisa sempre ponderar se os seus enunciados acerca da origem do ser humano no âmbito criado são de fato inteligíveis aos homens e mulheres do nosso tempo.
A noção teológica de (uma) creatio continua é interessante. Mas, tanto a noção de criação quanto a de continuidade, como um contínuo-criar da parte de Deus, exige igualmente o tempo (e o espaço), e pode confundir a noção bíblica de creatio ex-nihilo com a evolução que ocorre no interior da (sua) criação onde os entes/seres aí surgiram, surgem e surgirão por processos evolutivos, geracionais, não propriamente criacionistas.
O que havia antes do surgimento do fenômeno humano no planeta Terra certamente não dependia dos humanos (pois estes simplesmente ainda não existiam!), e o que haverá de ser ou de advir depois do ser humano, do seu eventual (e possível) desaparecimento neste planeta, também não é tão absolutamente dependente do ser humano quanto comumente pensamos. Por um lado, é certo que nós podemos, hoje, com armas atômico-nucleares, destruir o planeta inteiro. Nesse sentido somos/seríamos os únicos responsáveis pela nossa própria extinção. Mas, por outro lado, para além dessa já tão aterradora possibilidade, hoje ao alcance das mãos humanas, há também outros fatores que estão fora do nosso alcance e/ou controle. Bastaria, por exemplo, que algum dos milhares de meteoros de grandes proporções, que viajam a altíssima velocidade pelo universo, viesse, em sua rota natural, num belo “dia”, diretamente ao encontro do nosso planeta Terra colidindo frontalmente com ele e provocando, em relação ao ser humano, algo semelhante ao que se diz cientificamente que ocorreu no tempo em que os dinossauros foram extintos! E tudo – todos esses momentos históricos, vividos, experimentados, catalogados, ensinados nas universidades etc. – perder-se-iam no tempo como lágrimas na chuva.
Mas, se as lágrimas não se perdem na chuva, porque se integram às propriedades químicas da água da chuva, como também os pingos d’água da chuva não se perdem no oceano porque se integram a ele, então, quiçá, todos esses momentos não se percam no tempo, nem os tempos se percam na atemporalidade, mas se integrem ao que chamamos de eternidade. Essa integração do tempo/temporal à eternidade/eterno, que Raimon Panikkar chamou de tempiternidade, como quer que se a denomine nas distintas religiões, com equivalentes homeomórficos, é sinônimo de salvação, não de aniquilação; é o correspondente da esperança e constitui o núcleo da boa notícia das religiões.
Talvez a força integradora, universal, relacional por excelência, que une o temporal ao eterno, e vice-versa, seja o “amor”. Se o Eterno é Amor – parafraseado o autor da Primeira Carta de João (4, 8.16) -, e se o amor é o princípio do movimento-para e do repouso-em, então podemos dizer que “nele vivemos, nos movemos e existimos” – como dissera o apóstolo Paulo no Areópago de Atenas (At 17,28). Amar é o modo de “nascer” para a eternidade; o modo do tempo ser invadido, perpassado pelo eterno e integrado na eternidade. Pensado no horizonte da criação, esse “novo nascimento” fundado no Amor divino, no Espírito Santo – de que Jesus falava a Nicodemos (Jo 3,3) -, foi chamado de “nova criatura”; pensado no horizonte do divino foi chamado de “divinização”, “regeneração” ou de “participação na vida divina”. São modos soteriológicos diversos de articular tempo-eternidade, porque esse mesmo amor divino em nós e no universo, esse prelúdio da eternidade atuante na (nossa) temporalidade, suscita em nós “a certeza daquilo que ainda se espera”, que autor da Carta aos Hebreus chamou de fé (Hb 11,1). Com efeito, só o amor, fundamento daquilo que se espera, é digno de fé.
Luiz Sureki SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE