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Três interpelações da interculturalidade

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Luiz Sureki, SJ

Empregar o termo “intercultural” supõe que estejamos conscientes da real pluralidade de culturas existentes no mundo. Algo semelhante ocorre com o termo “inter-religioso”, que aponta para a pluralidade de religiões. Pluralidade cultural e pluralidade religiosa constituem um fato indissociável.

A simples constatação do pluralismo cultural-religioso como um fato já nos diz que aquelas atitudes monoculturais e monorreligiosas que atravessaram os últimos dois mil anos da história do Ocidente já não são mais sustentáveis nem desejáveis nos albores do terceiro milênio. Na verdade, é graças às diferentes culturas e, por conseguinte, às diferenças culturais, que podemos compreender melhor nossa própria cultura; e é graças às religiões, e às diferenças religiosas, que compreendemos melhor nossa própria religião. O pluralismo não é necessariamente uma ameaça à identidade cultural-religiosa de um povo; antes pode ser uma grande oportunidade de redescobrir ou ressignificar essa identidade desde um sincero diálogo com os diferentes.

O monoteísmo das religiões abraâmicas, por exemplo, não é uma exceção. A maioria absoluta das religiões e das denominações religiosas existentes no mundo não são monoteístas. Note-se que não estamos falando em número de fieis! Acrescente-se a isso o fato de que a intuição originária do cristianismo acerca de Deus é trinitária e, nesse sentido, tem também sua especificidade frente ao judaísmo e ao islã. A religião sempre foi uma das mais importantes expressões da cultura. Diálogo inter-religioso e diálogo intercultural se pertencem e se exigem mutuamente. Toda crise cultural implica em algum tipo de crise religiosa, e vice-versa.

Um dos maiores promotores da interculturalidade e do diálogo inter-religioso, Raimon Panikkar (1918 – 2010), nos diz que a interculturalidade interpela a cada um de nós a superar – não a suprimir – três princípios bem característicos da nossa cultura ocidental: o princípio do pensar analítico, o do pensar conceitual e o do pensar por escrito. (In: https://abre.ai/gTMe).

Quanto ao princípio do pensar analítico, observou ele que o gênio do Ocidente se caracteriza pela classificação. O mundo moderno ocidental está preso em uma rede de classificações. Se não classificamos, analiticamente, não nos sentimos seguros. A ciência moderna é um sistema genial e gigantesco de classificação. Não há lugar para a equivocidade nem multivocidade, nem ambiguidade, e, com isso, muitas vezes, nem lugar para a vida. São tantas distinções a fazer que depois de feitas já não sabemos mais como ajuntá-las. Resta a especialização em uma das partes que será levada à cabo por meio de mais distinções. As numerosas especializações reclamam também serem agrupadas, classificadas ou reclassificadas, e então dão origem a um conjunto de ciências mais ou menos afins, como as ciências da religião, as ciências econômicas, as ciências sociais, as ciências biológicas, as ciências exatas etc. Parece que sabemos cada vez mais de cada vez menos, o que não combina muito bem com o conceito de “sábio”!

Junto ao princípio do pensar analítico está o pensar conceitual. O pensar conceitual busca a quididade, a essência, a definição, busca abstrair os traços particulares de modo a poder aplicá-los a todos os entes daquela espécie. No conceito de “homem”, por exemplo, está a humanidade inteira com seus quase oito bilhões de seres humanos. Isso só é possível pela redução da pluralidade de seres humanos à unidade do conceito. Costumamos dizer que cada ser humano é único e irrepetível, mas é justamente essa singularidade (minha e tua) que acaba por perder-se no conceito. Com efeito, “conceito” é aquilo que a mente capta (conceptus em latim; e de modo similar Begriff em alemão). É o grande instrumento da razão, é sua criatura. É o que a razão concebe, e somente a unidade é inteligível à razão; é a famosa reductio ad unum. Buscar um conceito de religião, por exemplo, é um atentado à riqueza e à diversidade religiosa. Basta ver que o “nosso” conceito de religião, na medida em que precisa de um “Theós” (“Deus”) para ser compreendido, já não faz jus à pluralidade de religiões existentes no mundo!

À classificação e à conceitualização acompanha o “pensar por escrito”. A questão aqui diz respeito ao modo com que vamos nos habituando a pensar somente aquilo que podemos colocar por escrito. Somos reféns das escrituras. O contato interpessoal e a tradição oral estão se perdendo. Os escritos se tornaram amuletos exteriores sempre mais necessários para pensar ou expressar a outros o que se pensa. Basta lançarmos um olhar para a nossa vida acadêmica atual. Quem é que escreve hoje um artigo científico num periódico reconhecido de sua área sem inserir várias notas de rodapé reportando-se a outros escritos? Quem é que ainda ministraria aulas num curso de graduação ou de pós-graduação em nossos centros universitários sem levar consigo algum livro ou livros, artigos, ou sem ter preparado algum material por escrito destinado aos discentes do seu curso? Não é a capacidade de “pensar por escrito” que fundamentalmente sustenta a nossa distinção entre letrados e analfabetos?

É preciso insistir no valor e na dignidade da palavra falada, do diálogo interpessoal, e buscar o difícil equilíbrio entre oralidade e escritura. É claro que não se trata de abolir a escritura, mas sim em perceber que não é necessário avaliarmos a sabedoria de alguém tão somente pelo que ele escreve! Se fosse assim, o título de sábio não poderia ser atribuído, por exemplo, a Jesus de Nazaré, o Cristo, que nada escreveu! “Letrados” (escribas e mestres da lei) não são, necessariamente, sinônimo de “sábios”!

O pensar por escrito nunca é de todo espontâneo. O tempo do pensar e o tempo do escrever são diferentes. Para escrever é preciso elaborar o pensado, re-pensar, reunir dados, seguir uma ordem lógica de exposição/argumentação, ater-se às regras gramaticais, recorrer a outras fontes bibliográficas, prestar atenção ao público a que se dirige, etc. Ao ser posto por escrito aquilo que tão espontaneamente havíamos vivido, experimentado, partilhado, conversado, sentido, se emocionado, se admirado, se alegrado, se entristecido etc., se perde inevitavelmente algo, pois tais experiências vivas/vividas não se deixam reduzir à definição conceitual. A letra mata (cf. 2Cor 3, 6).

As três interpelações da interculturalidade, tão sumariamente apresentadas, chamam nossa atenção para o fato de que nem todas as culturas e suas expressões religiosas são analíticas, conceituais e escriturísticas como o é a nossa cultura ocidental, nossa filosofia da religião e nossa teologia cristã. Por isso, o diálogo intercultural e inter-religioso não consiste numa comparação de escritos e escrituras em nome da inteligibilidade do conceito. As diferentes expressões religiosas – quer escritas, quer orais, quer ambas – das diferentes culturas humanas apontam para a grandeza do mistério que as ultrapassa, e reclamam um reconhecimento no nível existencial, afinal a salvação de que falam as religiões não é um simples conceito produzido pela razão humana, nem um fruto colhido pela mera compreensão intelectual de um discurso teórico, nem tampouco a síntese categorial extraída de um conjunto de escritos tidos por sagrados, mas antes diz respeito ao fim do ser humano como tal e como um todo.

 

Luiz Sureki, SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

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