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Um Deus Trindade

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Geraldo De Mori SJ

A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós” (2Cor 13,13).

 

Todas as igrejas cristãs confessam a fé num Deus que é comunhão de pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. No calendário litúrgico da Igreja católica, a festa da Trindade é no domingo que se segue a Pentecostes. Trata-se de uma festa do tempo comum, que intervém depois do ciclo pascal, no qual se celebra a revelação máxima do amor do Pai, no Filho que, pela força do Espírito, entrega sua vida até à morte de cruz como prova de amor, sendo ressuscitado pelo Pai na força do Espírito Santo, e glorificado junto do Pai.

Muitos fiéis, apesar de confessarem a fé no Deus Trindade, não entendem o que significa essa confissão. Se Deus é único, por que falar que é “comunhão de três”, ou por que insistir que é “um só Deus em três pessoas”, como o faziam os antigos catecismos? Essa dificuldade remonta ao início do cristianismo. Segundo os evangelhos sinópticos, a resposta de Jesus ao Sumo Sacerdote, se ele era o “Cristo, o Filho de Deus” (Mt 26,63; Mc 14,61; Lc 22,70), corresponde ao motivo “teológico” de sua condenação. De fato, ao afirmar “tu o disseste […] a partir de agora vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso e vindo sobre as nuvens dos céus” (Mt 26,64); “eu sou. E vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poderoso, vindo com as nuvens do céu” (Mc 14,62); “vós mesmos estais dizendo que eu o sou!” (Lc 22,70), ele se fazia igual a Deus, como aparece em Jo 10,33, quando os judeus dizem que “sendo apenas homem”, ele se fazia “Deus”, ou em Jo 8,58, quando Jesus afirma que “antes que Abraão existisse, eu sou”. Tal dificuldade não diminuiu no período que se seguiu, feito de polêmicas com o judaísmo, para o qual a confissão no Deus único não admitia divisão em Deus, e com os filósofos gregos, que, pela razão, admitiam somente um princípio único como explicação de tudo.

A nomeação de Deus, ou seja, sua apelação como Pai, Filho e Espírito Santo, é atestada no Novo Testamento, com uma das formulações mais antigas no texto paulino de 2Cor 13,13. Em geral, em suas cartas, Paulo sempre saúda as comunidades em nome de Jesus e do Pai, mas nesse texto, ele o faz evocando a graça de Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo. No final do Evangelho de Mateus aparece Jesus que envia os apóstolos a anunciarem o evangelho a todo o mundo batizando em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Essas atestações firmes do Novo Testamento são baseadas na experiência que os discípulos tiveram de Jesus, que se referia a Deus como Pai, que era movido pelo Espírito. Quando, no período que se seguiu ao Novo Testamento, a fé cristã começou a ser questionada por apresentar uma nova concepção de Deus, iniciou-se um longo processo de aprofundamento da “teologia” cristã, que culminou nos concílios de Niceia (324) e de Constantinopla I (381). Várias opiniões equivocadas ou errôneas tiveram que ser descartadas, como as dos diversos “modalismos”, segundo os quais o Deus único se revelava sob vários “modos”: como Pai, no Antigo Testamento, como Filho, no tempo de Jesus, como Espírito Santo após a morte e a ressurreição do Cristo. Os símbolos de fé, baseados na fórmula batismal, já atestada no final do evangelho de Mateus e na prática das diversas comunidades cristãs, foram as referências firmes a partir das quais deu-se esse processo de aprofundamento.

No início do século IV, quando a fé cristã deixou de ser perseguida e a Igreja tornou-se a religião do império romano, Ário, um padre de Alexandria, iniciou uma disputa com seu bispo, Alexandre, afirmando que “houve um tempo em que o Filho não existia”, que ele teria sido “criado”, não “gerado”. A discussão que se seguiu levou o imperador Constantino a convocar o concílio de Niceia (324), no qual foi definido que o Filho era “gerado e não criado”, que ele era “consubstancial ao Pai”, ou seja, da mesma substância do Pai. Essa definição, que faz parte do chamado Símbolo de Niceia, deu origem a uma nova ideia de Deus, diferente da que existia no judaísmo e na filosofia grega. Nos anos que se seguiram, um outro grupo, conhecido como “pneumatômacos”, porque negavam a divindade do Espírito (= pneuma em grego), levou à convocação de outro concílio, em Constantinopla (381), definindo que o Espírito é “senhor e doador da vida”. Não se utiliza um termo filosófico, como para falar da divindade do Filho, mas nomeia o Espírito Santo como “senhor e doador da vida”, atributo que é próprio de Deus.

Essas discussões, que se deram nos primeiros séculos do cristianismo, podem parecer ultrapassadas para os que se dizem hoje cristãos e cristãs. No entanto, grande parte dos fiéis tem dificuldades de entender a afirmação de Deus como único em “três pessoas”. É verdade que toda a liturgia cristã é trinitária e muitas práticas religiosas cristãs apontam para o Deus Trindade. Porém, poucos fiéis se dão conta que o Deus no qual creem não é somente uma questão de “nomes”, mas um caminho de vida com implicações em todas as suas dimensões. Alguns teólogos falam da Trindade como “gramática”, não só da língua cristã, mas do modo de ser, de ver e de viver da fé cristã.

De fato, já no “sinal da cruz”, com o qual muitos cristãos se “persignam” a cada dia, aparece uma pista para entender a Trindade. Em geral, se diz “em nome do Pai”, e se toca a fronte, que evoca em cada um o lugar de onde emerge não só o pensamento, mas a própria identidade. O Pai, na Trindade, é a fonte, a origem, a razão última de tudo. A ele pertence tudo. Na Trindade, é ele quem gera eternamente o Filho na força do amor do Espírito. Esse amor gerador é também o que ajuda a entender sua capacidade de sair de si, criando algo que não seja ele, mas que possa a ele voltar. Esse sair de si, por amor, se expressa como “condescendência” e sua expressão, no sinal da cruz, é justamente o descer da fronte ao ventre ou às entranhas. Na bíblia, as entranhas são o lugar da profundidade, dos sentimentos mais extremos: amor, ódio, gratuidade, violência. Nelas também são depositados os excrementos, sinais da finitude e da decadência. Ao identificar o “nome do Filho” com o que na humanidade representa sua profundidade e sua baixeza, a fé cristã afirma a humildade divina, que não se apega “ao ser igual a Deus”, mas se despoja, “assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano”, e, mais ainda, humilhando-se e “fazendo-se obediente até à morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-8). O Deus cristão, em Jesus, é um Deus que não teme encarnar-se, assumir as contradições e as possibilidades da liberdade corpórea e finita. Entre a fronte e o ventre, miniaturas no corpo do céu e da terra, se encontram os ombros, que, no sinal da cruz, recordam o “Espírito Santo”. Na Trindade, ele é o elo de comunhão e amor entre Pai e Filho. Ele traça no corpo o sinal horizontal entre um ombro e outro, passando pelo coração, que, na bíblia hebraica, é um dos termos para dizer o ser humano como angústia, alegria, coragem, desejo, vontade, amor, expressando também o caráter, o temperamento, a decisão. É o Espírito que gera em Deus o Filho. É ele também que gera em cada fiel o ser como Jesus, capaz de condescendência, saída de si, humildade e dom, que ligam céu e terra, fronte e ventre, através de um amor gerador de comunhão e vida.

Persignar-se cada dia é recordar que a imagem da Trindade está inscrita em si, devendo, porém, traduzir-se em gestos que apontem para uma vivência trinitária: saber tomar iniciativa, sair de si, ir na direção do outro, em gestos que expressem a condescendência em situações de extrema vulnerabilidade e fraqueza, em atitude de humilde serviço e solidariedade, movido pelo sopro do amor que é capaz de transfigurar tudo, para que o que aparentemente está dividido, possa unir-se no traço da comunhão.

Geraldo De Mori Sj é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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