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Um Eu enlouquecido?

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Carlos Roberto Drawin

Qual a origem do mundo?  A vida tem alguma finalidade? O que é o tempo?  A felicidade é alcançável? Perguntas como essas, como tantas outras semelhantes, ressoam incessantemente em todas as épocas e lugares, como testemunham as lendas e os mitos de todas as culturas. Espanta, contudo, que ninguém, nem o mais profundo filósofo, pode abrigar a pretensão de respondê-las, pois toda resposta acaba por recolocar a questão em uma outra perspectiva ainda não examinada, a suscitar menos certezas e mais dúvidas. Talvez, por isso mesmo, essas perguntas que não podem ser silenciadas tenham sentido, justamente, porque não podem ser respondidas. Se o fossem, elas cessariam e o ser humano, amordaçado pelas respostas, interditado em suas inquietações, perderia a sua condição peregrinante e mergulharia na mudez das pedras. Talvez essa especulação possa parecer inútil e tola, por impossível de se efetivar e, assim, ela é frequentemente tomada por uma atividade vazia, carente de concretude e eficiência.

Certamente, especular não é o mesmo que constatar um fato ou formular uma hipótese a ser confirmada ou refutada, porque, em sua procedência latina, a palavra designa o ver, o observar, o contemplar e reconhecer (speculatio). Alguns, como São Paulo na Primeira Epístola aos Coríntios, a associam a espelho (speculum), porque Deus não podendo ser conhecido diretamente, só o pode ser indiretamente, visto por reflexo em suas obras. Seja como for, especular envolve um outro olhar que não se prende e não se consome no imediato das sensações e nos convida a ir para além do estreito círculo dos nossos afazeres e para nos entregarmos em um jogo de pensamento semelhante à experiência que temos quando, fascinados por algum objeto, como uma obra de arte, a examinamos detidamente, explorando-a em todos os seus ângulos e perfis.

Quando construímos a imagem de um mundo inteiramente sedado, sem inquietações e angústias, sem mais propor perguntas irrespondíveis e atolado nas satisfações e mazelas quotidianas, então recuamos horrorizados, pois vislumbramos que nele estaria consumada a desumanização do humano.

O que ganhamos com esse exercício de imaginação criativa? Talvez um certo olhar distanciado de algumas ilusões contemporâneas como, por exemplo, a de uma sociedade inteiramente transparente a si mesma e capaz de prover todos os meios materiais e técnicos para o surgimento de indivíduos plenamente satisfeitos. Todavia, ao qualificar tal crença como ilusória não estaríamos flertando com um perigoso imobilismo? Não estaríamos arrancando a motivação que nos faz suportar os trabalhos e os dias? Não estaríamos sufocando as razões da esperança? Não estaríamos instilando o veneno no pessimismo a desestimular a luta por um mundo melhor?

Creio que não! Nas últimas décadas, fomos induzidos a aceitar como evidente a crença que atribui toda responsabilidade de realização humana para os indivíduos e interdita todas as possibilidades de transformação histórica. Algo que poderia ser resumido da seguinte maneira: não há futuro comum, as coisas são como são, há somente administração do presente, mas isso é bom, pois se cada um conseguir o que puder obter em saúde, consumo e prazer, então todos seremos necessariamente beneficiados, afinal, nos dizem, a sociedade em si não existe, ela não é mais do que a soma dos indivíduos. Essa mensagem continuamente reiterada produz um “Eu” enlouquecido, oscilante entre a exaltação megalomaníaca de ser um sol em torno do qual tudo gira e o desmoronamento depressivo de se sentir esmagado pela opacidade de um destino incompreensível.

Ora, nos ensina o filósofo italiano Giorgio Agamben, os gregos distinguiam a “vida nua” (zoé), centrada na simples imanência biológica, de uma vida humanamente qualificada (bíos), aquela que aponta para a comunidade. Esta, porém, sendo constituída não apenas por nossos contemporâneos, mas também pelos que nos antecederam e os que ainda virão. Essa maneira humana de viver, a de uma vida instruída pela presença do Outro, é o signo mais palpável da transcendência. Sem ela a frase atribuída por Dostoiévski a Ivan Karamázov – “Deus não existe, tudo é permitido” – arrisca a tornar-se “Deus não existe, nada é permitido”: pois não haveria mais o passado dos que morreram e nem o futuro dos que ainda não nasceram, apenas um presente cada vez mais fugaz e ameaçado a diluir-se no nada.

Carlos Roberto Drawin é professor no departamento de Filosofia da FAJE

 

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