Alfredo Sampaio Costa SJ
A realidade se abre a uma perspectiva e uma compreensão mais profundas. Adquire uma espessura sacramental ! Teilhard de Chardin falará da “diafania” do universo. Leonardo Boff na sua obra “Os sacramentos da vida” retoma essa categoria, chamando-a “transparência”:
“O mundo não está dividido somente em imanência e transcendência. Existe uma outra categoria intermediária, a transparência, que recolhe em si tanto a imanência como a transcendência. Estas não são realidades opostas, uma frente à outra, excluindo-se mutuamente, mas são realidades que comungam e se encontram entre si. Se transpassam, se conjugam, se combinam, se associam, se religam, se concatenam, se comunicam e convivem uma na outra. A transparência quer dizer exatamente isso: o transparente se faz presente no imanente, obtendo que este se torne transparente à realidade daquele. O transcendente, irrompendo dentro do imanente, transfigura o imanente, tornando-o transparente” (edição espanhola, Sal Terrae, Santander 1977, 37).
Que novidade isso acrescenta? Com ela Inácio alude a uma permanência de Deus na realidade criada que possibilite em cada momento e circunstância nosso encontro pessoal com Ele. Essa presença e habitação de Deus na realidade Inácio a vê de um modo diferenciado e gradual, segundo a qualidade dos seres e utilizando as categorias filosóficas da sua época: Deus habita nos elementos inanimados dando-lhes o ser, nos vegetais possibilitando a sua vida vegetativa, no reino animal tornando possível o mundo de suas sensações.
No ser humano, a inabitação de Deus assume, segundo Inácio, os modos de presença das escalas anteriores, ao mesmo tempo que se mostra em um grau qualitativamente diferente. Por ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, o homem é templo seu, um lugar especial onde encontrá-lo, adorá-lo e servi-lo. “E assim em mim dando-me o ser, animando, dando sentido e fazendo-me entender; do mesmo modo fazendo de mim um templo seu, tendo eu sido criado à semelhança e imagem de sua divina majestade”.
A presença de Deus, que no Antigo Testamento se localizava primeiro na tenda e em seguida no templo, no NT se realiza de maneira absoluta, insuperável e única na pessoa de Jesus Cristo, em quem Deus fez sua morada entre nós. Em Jesus Cristo habita a plenitude da divindade corporalmente, e nós chegamos a ser templos do Espírito Santo por nossa relação com Jesus Cristo, que é o Templo por excelência do Espírito de Deus.
A linguagem usada por Inácio hoje pode parecer ingênua, mas a mensagem é profunda e possui raízes bíblicas. São Paulo aludirá a essa mesma inabitação de Deus: só que para ele a expressão mais correta não seria que Deus habita nas coisas, mas sim que as coisas estão em Deus. Com um Deus que estivesse unicamente no céu dificilmente poderíamos entrar em uma comunhão de amor e de serviço. Um Deus que só encontrássemos no nosso interior se converteria facilmente em objeto de nossos desejos mais arcaicos. O Deus contemplado, amado e servido no mundo adquire um caráter de alteridade irredutível ao âmbito de nossas necessidades. É Ele quem está nas pessoas e nas coisas.
“Tudo está habitado”: tal é a imensa e consoladora verdade de nossa fé cristã em Deus. Todo o real é templo de Deus, lugar de encontro e de união com Ele, meio divino. O mundo material, as pessoas, as relações, as coisas … não são já uma simples “ocasião” para encontrar Deus a partir delas. Isso confere à criação e à história um caráter de sacramento desse encontro.
Viver num mundo habitado pode causar dificuldades a quem não se sente bem em meio aos outros. Importante aqui notar que Inácio fala de um “sentir-se em casa”, “em agradável companhia” em meio às pessoas, que aparecem como ocasiões para um encontro salutar.
E que provocação chega até nós de um Deus que se manifesta desta forma?
Uma vez que Deus está na realidade habitando-a, somos chamados a habitar o que somos. Mas quanta fragmentação do nosso eu, quanta “ausência” naquilo que somos e fazemos! Como poderão os demais e Deus mesmo entrar em contato conosco se não habitamos a realidade que somos, a ação que realizamos? Também nisso se nos pede que sejamos como Deus, e talvez hoje mais do que nunca, pela maior dispersão à qual somos empurrados desde dentro e desde fora de nós mesmos.
Como iremos conseguir isso? Descobrindo a Deus em toda a realidade tal como Ele é e está: habitando-o. Adorando, admirando e agradecendo-lhe que Ele seja assim. Convertendo a esse Deus e a seu Projeto sobre o mundo no objeto de nosso desejo.
Convém destacar que a presença de Deus se encontra sempre e em todo lugar e é preciso vê-lo atuante nas circunstâncias nas quais sua presença se faz mais espessa[1].
Nas palavras de Karl Rahner:
“Só consegue encontrar Deus em todas as coisas, experimentar a transparência divina das coisas quem encontra a Deus ali onde ele desceu ao mais espesso, ao mais fechado ao divino, o mais tenebroso e inacessível deste mundo: a cruz de Cristo. Só assim se torna limpo o olho do pecador, se lhe faz possível a atitude da indiferença e pode encontrar então a Deus, que sai ao seu encontro na cruz e não só onde ele quisera que estivesse“[2].
Esse ponto nos leva a verificar como nos sentimos na nossa realidade concreta. Muitos gostariam de fugir para bem longe dela. Descobrir a presença habitual de Deus nela pode nos fazer mudar de ideia!
A ação de graças pelos dons recebidos supõe trazer à memória a minha pobreza radical. Sou um pobre, mas agraciado pelos dons de Deus. Dons que me remetem continuamente ao Doador deles, em uma dinâmica de crescimento e realismo, tendo sempre diante dos olhos minha pobreza essencial e a riqueza de tanto bem recebido. Só a pessoa realmente pobre é capaz de apreciar o dom mais insignificante e sentir uma gratidão autêntica. A pobreza de espírito e a ação de graças se reforçam mutuamente. A pessoa não somente dá graças pelos dons recebidos da criação, redenção etc., que diariamente recorda nesse momento, mas também pelos dons que recebeu no dia de hoje. A nossa gratidão deve se centrar nos dons concretos e pessoais com os quais cada um é bendito diariamente: luzes, moções, acontecimentos, encontros pessoais, alegrias, cruzes. A ação de graças por todo o bem recebido nos aproxima das coisas, para vermos Deus em todas elas. Todas são amáveis e me ajudam a continuar na busca do “fim para o qual fui criado” (EE 23).
O exame não é uma pura capacidade de memória e reflexão sobre como eu atuei em uma parte do dia. Não se trata aqui de uma penosa e rotineira introspecção. Por isso Inácio quer que peçamos a luz do Espírito. Sem ela, as nossas potências naturais são incapazes de fazer-nos avançar no conhecimento do mistério que somos e de apalpar a passagem de Deus por nós durante a jornada[3]. O exame é focalizado na ação de graças. É interessante que em 2009 apareceu o pequeno volume de auto-ajuda de Sarah Breathnach intitulado “Abundância simples” (“Simple Abundance”)[4]. A autora propõe ao leitor uma fórmula para alcançar a sua plenitude de vida: sugere-lhe que escreva um “diário de gratidão” (daily gratitude diary). Isso revela a força apaixonante de transformação que possui o exame de consciência inaciano! A suposta grande descoberta de Sarah Breathnach não faz nada mais do que sublinhar a importância de prestarmos atenção, com periodicidade diária, às causas que cada um tem para estar agradecido aos demais, à vida e a Deus[5].
Focalizar a atenção sobre as razões para a gratidão pressupõe uma reação muito importante. Significa reconhecer que a história pessoal está feita – também e sobretudo – de contribuições benévolas de caráter fundante para nossa personalidade. Quer dizer que a pessoa nasce e se faz a partir do altruísmo dos outros (do Outro em primeiro lugar). Reconhecer cheios de gratidão que partes muitos valiosas de nós mesmos tem a sua origem em algo recebido grátis, mas que ao mesmo tempo não geram obrigação nem atadura, mas sim espanto e alegria inexplicável. Significa que o objetivo de qualquer crescimento pessoal não é simplesmente sair da miséria neurótica para alcançar a infelicidade normal, mas sim sair da ignorância narcisista para descobrir a possibilidade de uma fecunda relação altruísta.
Ser agradecido supõe saber pôr em movimento a memória do coração. O caráter relacional da gratidão exige tornar vitalmente presentes àqueles sem os quais seriam impossíveis diversos matizes da nossa existência. A memória do coração se cultiva repetindo pensamentos e sentimentos que recriam a vivência de sermos receptores de benevolência. A necessidade de manter a memória do coração talvez seja uma das razões psicológicas de porque se repete tanto a prática das litanias de ação de graças em muitas religiões.
O que a gratidão ensina, porém, é que existe também uma humildade alegre, ou uma alegria humilde, porque ela sabe que não é sua própria causa, nem seu próprio princípio – e se regozija ainda mais (que prazer dizer obrigado!) com isso -, porque ela é amor, e não amor a si antes de tudo ou sobretudo, porque se sabe devedora, se quisermos, ou antes (pois nada tem a reembolsar), porque se sabe plenamente satisfeita, além de qualquer expectativa e anteriormente a qualquer expectativa, pela própria existência do que a suscita, e que pode ser Deus, quando se crê nele, que pode ser o mundo, que pode ser um amigo, um desconhecido, que pode ser qualquer um, porque ela se sabe objeto de uma graça – aí está! – que é a existência, talvez, ou a vida, ou tudo, e que ela agradece, sem saber a quem nem como, porque é bom agradecer, regozijar-se com seu regozijo e com seu amor, cujas causas sempre nos excedem, nos contêm, nos fazem viver, nos arrebatam”[6].
Nestes tempos duros que estamos vivendo, peçamos ao Senhor a graça de podermos ser agradecidos por Ele continuar alimentando nossa fé e esperança, e tornando-nos capazes de sermos solidários com aqueles e aquelas que mais padecem!
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] Diego M. Molina Molina, Dios, todo en todo: La idea de Dios a partir de la Contemplación para alcanzar amor, Manresa 93 (2021) 145.
[2] Karl Rahner, Meditaciones sobre los ejercicios de San Ignacio, Barcelona: Herder 1971, 260.
[3] Antonio Albuquerque, La memoria en los Ejercicios, Manresa 74 (2002) 151.
[4] Sarah Breathnach, The Simple Abundance. Journal of Gratitude, New York: Warner Books 1996.
[5] Luís López-Yarto, La Gratitud, mucho más que una emoción pasajera, 16.
[6] André Comte-Sponville, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Martins Fontes, SP 1999,105-106.