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Um novo modo de ver a vida e de situar-se nela amando e servindo

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Alfredo Sampaio Costa SJ

A espiritualidade inaciana quer nos levar a uma experiência renovada de contato com o Senhor em todas as coisas. Ela nos conduz a um olhar amoroso, unificado, concreto e ao mesmo tempo abrangente e inclusivo. Santo Inácio conclui os seus Exercícios Espirituais com a chamada “Contemplação para Alcançar o Amor”, preparando assim o exercitante para voltar à vida cotidiana após a experiência forte do retiro inaciano.

“Ver como Deus habita nas criaturas”(EE 235): eis a proposta grandiosa de Inácio, com toda sua força sintética e abrangente, que forja uma proposta de espiritualidade holística, unificadora e integradora, tão necessária em um mundo de oposições e polarizações alimentadas por intolerâncias e radicalismos.

Não parece um pouco pretencioso considerar que podemos alcançar o Amor de Deus? Não seria mais humilde dizer “Contemplação para nos deixarmos alcançar pelo Amor de Deus?” Bem, em espanhol o verbo “alcançar” tem dois possíveis significados: o de “obter”, com acento no doador e o de “conseguir”, com acento no exercitante e no esforço humano que o dom requer . Por isso vemos alguns comentadores oscilarem ao nomear esse exercício entre “ser alcançados pelo Amor” ou “alcançar o Amor”. O Padre Ulpiano comenta que “na Contemplação para Alcançar o Amor o que se pede é muito importante e é preciso de todos os intercessores e de muita graça para poder alcançar o amor. Não diz se sou eu que alcanço o amor ou se esse amor é que me alcança” . Inácio é muito sóbrio nos Exercícios ao falar do Amor. Mas aqui ele deixa o seu coração falar! Creio que se olharmos para a Vida dos Santos e nossa própria experiência constatamos que ora somos surpreendidos por esse amor, ora o perseguimos tenazmente pedindo sempre a graça de alcançá-lo!

Quando Inácio, terminados os 30 dias de Exercícios, reenvia o exercitante à vida ordinária, não o faz como se o processo espiritual deste tivesse terminado. Muito pelo contrário. Os Exercícios não concluem nada; o que fazem é abrir a pessoa a uma nova forma de ver a realidade e de se situar nela, uma nova espiritualidade e seu processo correspondente, cuja síntese é oferecida na “Contemplação para alcançar o Amor”. Trata-se de uma ponte entre os Exercícios e a vida ordinária, de uma “lente de contato” que conserva um especial encanto e poder transformador.

Um olhar detido, pausado e repleto de afeto: uma mística do olhar

Deus é uma Presença real, mas também escondida. Não se acede a Ele sem mais pelos olhos corporais, mas sim pelos olhos da fé, pelos olhos do coração. Os nossos olhos corporais precisam de uma lente especial para perceber uma realidade que, de outra forma, permaneceria inacessível a eles. Uma lente de contato através da qual possamos olhar o mundo, os demais e a nós mesmos de um modo novo.

Como fazer isso?  Contemplando as raízes sagradas das coisas como propõe Inácio de Loyola na Contemplação para alcançar o amor. Trata-se de exercitar um olhar demorado e amoroso sobre a realidade que a descobre como originada e habitada por Alguém, fluindo desse Alguém, dada ao homem como presente. Alguém que a transcende, mas que ao mesmo tempo é o seu fundamento permanente e que, portanto, existe e se faz presente e acessível nela. 

São Paulo tem esse olhar contemplativo que descobre que Deus é mais real do que o mundo, mais do que as coisas e nós mesmos, já que “Nele nos movemos, existimos e somos”; é um Deus que “dá a vida a tudo, o alento a todas as coisas” (At 17,25-28).

 

Contemplação do Amor revelado em Jesus

O texto inaciano, com sua linguagem abstrata, comum à academia do seu tempo, parece deixar Cristo de lado. Mas, nos Exercícios Espirituais, sempre que se fala de “contemplação” não se trata sempre de contemplar Cristo? Se queremos ser coerentes, essa última e grandiosa contemplação não poderia ser diversa. De fato, cremos que se trata de ver, em seu sentido mais real, todas as coisas como sinais do Amor de Deus revelado em Cristo. Contemplam-se as coisas enquanto são lugar da presença de Cristo e de sua atividade salvífica – criadora, conservadora, redentora, glorificadora – à luz da fé neotestamentária, iluminados pela luz do Ressuscitado, oculto e manifesto ao mesmo tempo em todas as coisas, como nos faz ver de forma clara o jesuíta mexicano Juan Manoel García de Alba, no seu interessante trabalho “Contemplação para Alcançar o Amor a Jesus” [1].

A Contemplação para Alcançar o Amor se faz em um ambiente de fé em Deus que se revela e se entrega continuamente em Jesus Cristo. O objeto da meditação é a ação atual de Cristo. Para Inácio “em tudo amar e servir” não são verbos sem complemento. Para ele trata-se de amar e servir em tudo a Jesus, presente em tudo e em todos, particularmente nos mais necessitados. Ele quer que descubramos que a criação, a encarnação e a redenção não são fatos do passado, mas sim que todos e o mundo estão cheios de seu amor redentor e glorificador[2].

Como podemos experimentar essa presença do Amor de Deus?

Vejamos alguns breves acenos ao texto dos Exercícios:

Uma Composição de Lugar inclusiva, participativa (EE 232)

“Ver como estou diante de Deus N. Senhor, dos anjos e dos santos que intercedem por mim”.

Esta composição de lugar, solene e grandiosa, recorda a oblação feita ao “Eterno Senhor de todas as coisas” (EE 98). Ela evoca um momento importante para a vivência de nossa fé. Para Santo Inácio esta composição de lugar é um símbolo de uma verdade cristã: que estamos sempre diante de Deus e de Cristo, como também diante da Virgem Maria e todos os anjos e santos que intercedem por mim. É tocante contemplar toda essa multidão celeste pedindo por mim!

Esta visão suscita um comportamento, um modo de viver, agradecido, admirado, maravilhado. É nesse ambiente que se desenvolverá toda a Contemplação para Alcançar o Amor. Portanto, como notava já o querido Padre Ulpiano, não é uma oração individualista, ao contrário, é feita em comunhão com todo o universo!

Admiração e agradecimento, eixos da “mudança de olhar” (EE 233)

Sabemos da importância que tem o pedido da Graça em cada exercício. Neste último, Inácio indica: “Pedir o que eu quero: será aqui pedir conhecimento interno de tanto bem recebido, para que eu inteiramente reconhecendo possa em tudo amar e servir a sua divina majestade” (EE 233). Não é o mesmo conhecer uma coisa do que reconhecê-la. O conhecimento descobre a estrutura interior e exterior das coisas, mas não diz nada sobre o seu sentido e sua procedência última. O reconhecimento penetra a realidade até descobri-la como dom de alguém para mim, para nós. Para conhecer as coisas não faz falta a fé.  Mas reconhecê-las na sua qualidade de dom não é possível sem ela.

Pois bem, o que Inácio pede nesta oração é que o conhecimento interno do real produza em nós um reconhecimento, isto é, a consciência agradecida da sua procedência, do seu caráter de dom de Deus ao ser humano.  Não poderia ser de outro modo! Como poderia um ser humano contemplar a realidade do mundo, de Jesus Cristo, da sua própria vida como provenientes de Deus e os seus dons pessoais sem saltar de admiração e júbilo por isso, sem encher-se de um profundo agradecimento?

Nada dinamiza tanto o amor humano como a experiência de que alguém nos ama gratuitamente e fez coisas importantes por nós. Se isso é verdadeiro quando aplicado à experiência humana, muito mais quando aplicado a Deus. Assim se explica porque Inácio pede a Deus nessa contemplação a graça do reconhecimento, sinônimo também de agradecimento, para que este se transforme em amor e serviço.

Amor, seguimento e serviço estão estreitamente vinculados no pensamento de Inácio. São expressões distintas de uma realidade fundamental que deve ser uma atitude habitual: o amor. A pessoa a quem nos propomos a seguir e servir é sempre Jesus, e Inácio quer que “a Ele vá encaminhado todo o peso do nosso amor” (MI, Epp. I, 514). A maneira como nos é dado amar, seguir e servir a Deus é amando, seguindo e servindo a Jesus[3]. O qualificativo que Santo Inácio dá ao conhecimento: “conhecimento interno”, “inteiramente reconhecendo” faz pensar em uma autêntica experiência existencial do amor de Deus manifestado e atualizado em Cristo, e experimentado ao largo dos Exercícios.

Jesus Cristo é o termo absoluto, recapitulador e último do amor do Pai, Ele é o Filho amado e Nele todos os homens e o mundo. Para o cristão crer, esperar e amar a Deus é crer, esperar e amar a Cristo[4].

Pe. Alfredo Sampaio Costa é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE.

[1] Juan Manuel García de Alba, La contemplación para alcanzar amor a Jesús en los escritos de San Ignacio, Jalisco: Ediciones Puente Grande 2019, 59.

[2] Cf. Juan Manuel García de Alba, La contemplación para alcanzar Amor a Jesús..., 67.

[3] Cf. Juan Alfaro, Cristología y Antropología, Madrid: Ediciones Cristiandad 1973, 434.454.462.

[4] Cf. Juan Manuel García de Alba, La contemplación para alcanzar Amor a Jesús en los escritos de San Ignacio, 95.

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