Geraldo Luiz De Mori, SJ
E Davi e toda a casa de Israel, festejavam perante o Senhor, com toda a sorte de instrumentos de pau de faia, como também com harpas, e com saltérios e com tamboris, e com pandeiros e com címbalos (2Sm 6,5).
Em muitos lugares do Brasil já começaram os festejos pré-carnavalescos. A maioria das cidades que tradicionalmente são conhecidas pelo carnaval iniciam nos próximos dias suas festas de 2024, atraindo milhões de foliões e turistas para momentos de alegria, dança, humor, numa verdadeira festa nacional, reconhecida pela maioria do povo brasileiro como uma das atividades que melhor traduzem a identidade brasileira.
O antropólogo Roberto da Matta, na obra Carnavais, malandros e heróis, de 1979, propõe uma leitura interessante do carnaval, visto por ele como um dos “rituais” que dizem o que faz o brasil, Brasil, revelando algo da identidade nacional. Junto com o carnaval e relacionado com ele, coexistem, segundo o mesmo autor, outros dois “rituais”: a parada ou desfile do Sete de Setembro, e as procissões religiosas, em geral em homenagem a um santo ou à Virgem Maria. O desfile do Dia da Pátria, remete à figura de autoridade, representada pelas forças que encarnam o Estado, tanto as do executivo, quanto do legislativo e judiciário, mas também a dos militares, representando o poder de coerção e de “garante” da instituição. As procissões lembram a figura do “renunciante”, representada pelos santos ou aqueles que os representam na instituição eclesial, como os padres, bispos ou outras figuras religiosas. O carnaval tem no “malandro” seu representante típico. E quem é o malandro? Aquele que sabe driblar a dureza da instituição e a seriedade da disciplina do santo. Trata-se de uma figura transgressiva, que, em outras obras do autor, representa o “jeitinho”, ou seja, aquele que descobre brechas para poder existir em meio à dureza da vida e suas adversidades.
É interessante, do ponto de vista teológico, e de uma teologia contextual, tentar pensar o carnaval não só como festa transgressiva que encarna uma das figuras típicas da identidade brasileira, mas também como um espaço de “imaginação criadora”, transgressiva e utópica que recorre à alegria, à música, à dança, à fantasia, à confraternização como mediações para enfrentar o cotidiano muitas vezes feito de dor.
Para pensar nessa direção, é interessante trazer uma fala célebre de Dom Hélder Câmara, numa crônica radiofônica do dia 01/02/1975. Segundo o então Arcebispo de Olinda e Recife, “Carnaval é alegria popular”, “uma das raras alegrias que ainda sobram para a minha gente querida”. A alegria, a festa, o riso, são fundamentais para a vida de qualquer pessoa. Nem sempre, porém, é possível alegrar-se, festejar, dançar, brincar, seja por conta das dificuldades da vida, seja por conta dos sentimentos contraditórios que atravessam o coração humano, seja por conta das muitas coisas “sérias” nas quais estão implicadas a maior parte das pessoas no cotidiano, tanto no trabalho, quanto nas tarefas que têm que realizar em casa, na escola e nos muitos ambientes que frequentam.
A festa, que em geral acontece em clima de alegria, é fundamental para mostrar que a vida tem sentido. Em muitas culturas, as festas de fim de ano sinalizavam o fim do mundo antigo e o início de um mundo novo, feito de novas possibilidades. Algo disso permaneceu no mundo cristão com a festa do carnaval, que antecede o início do tempo da quaresma, em preparação para a Páscoa, principal festa do calendário litúrgico cristão. Nessas festas operava-se uma inversão do cotidiano, abrindo-o a novas possibilidades, que, em geral, não teriam continuidade depois, mas que, naquele momento, eram reais e davam sentido e alegria para quem as vivia. Nesse sentido, como diz Dom Hélder Câmara, o carnaval ainda é uma das raras alegrias que sobram para o povo.
Na mesma fala, o Arcebispo de Olinda e Recife se pergunta: “Peca-se muito no carnaval?” Esta questão remete, sem dúvida alguma, ao julgamento de muitos fiéis com relação ao carnaval, em geral visto somente como lugar de exageros ou de “perdição”. E o mesmo Dom Hélder afirma: “Não sei o que pesa mais diante de Deus: se os excessos, aqui e ali, cometidos por foliões, ou o farisaísmo e a falta de amor por parte de quem se julga melhor e mais santo por não brincar o carnaval”. E ele conclui da seguinte maneira sua fala sobre o carnaval: “Brinque, meu povo querido! […] É verdade que na quarta-feira a luta recomeça, mas ao menos se pôs um pouco de sonho na realidade dura da vida”.
Os argumentos de Dom Hélder com relação aos “excessos”, identificados por muitos fiéis como “pecado”, são parecidos com os de Jesus, que teve mais dificuldade em ser aceito pelos “fariseus” e os “mestres da lei”, que se consideravam “fiéis e santos”, do que pelas pessoas tidas como pecadoras em sua época. Por isso, o Arcebispo de Olinda e Recife conclui seu breve comunicado convidando o povo a brincar, pois esse tempo de “folia” dá ao mesmo povo a capacidade de sonhar, fazendo com que a dura realidade da vida, posta entre parênteses durante o carnaval, seja por um instante “anestesiada” e depois retomada com novo ânimo, para ser enfrentada com coragem.
De fato, para a maioria das pessoas que brincam o carnaval, seja nos muitos blocos que voltaram a ganhar o gosto da população em tantas cidades do país, seja nos desfiles impressionantes das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo, seja no “carnaval de rua” de Salvador e Olinda e Recife, os dias de “folia” são, como diz o termo de origem francesa, uma “loucura”, ou seja, um sair de si, feito de alegria, muita música, dança, congraçamento, extravasamento do melhor que cada um tem em si mesmo. E numa época em que impera o indivíduo, o que conta no carnaval é o grupo, o irmanar-se ao redor de um bloco, de uma escola de samba, de uma coletividade brincante.
Para muitos psicólogos, o que se vive no carnaval é da ordem da catarse coletiva. Pode-se pensar a catarse como anestesia ou ópio, mas ela pode também ser vista como no teatro grego, ou seja, como lugar de “educação” para a vida na polis. Nas sociedades plurais e fragmentadas do século XXI, e, no caso da brasileira, polarizada politicamente, o carnaval pode ser visto como uma catarse com função de atenuação da violência pelo ato brincante. O ato de brincar, muitas vezes identificado apenas como algo próprio das crianças, é fundamental no processo de humanização, sendo um lugar de educação dos afetos, corrigindo seus excessos, sobretudo os que tendem a se expressar em violência.
É interessante perceber a apreciação positiva da atividade lúdica pela Bíblia Hebraica. Segundo o livro dos Provérbios, antes que tudo fosse criado, a sabedoria estava junto de Deus, “brincando todo o tempo diante dele, brincando sobre o globo de sua terra”, achando as suas “delícias junto aos filhos dos homens” (Pr 8,30-31). Esse brincar da sabedoria é criador e criativo. Da mesma maneira, o brincar carnavalesco tem o poder de fazer sonhar, não para fugir da realidade, mas para enfrentá-la em sua dureza com novos olhos, como os da sabedoria divina, que é capaz de tudo renovar e de fazer novas todas as coisas. Oxalá, mais uma vez o carnaval de 2024 possa trazer ao “povo” brasileiro nova força para seguir adiante, enfrentando os desafios e criando algo novo.
Geraldo Luiz De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia