Alfredo Sampaio Costa SJ
Uma lente bifocal para contemplar o Ressuscitado[1]:
Santo Inácio, ao propor a contemplação dos mistérios da Ressurreição, faz duas observações que são como duas perspectivas a partir das quais devemos rezar. As contemplações serão feitas passando por essa lente bifocal.
O primeiro foco dessa lente é uma consideração: “Considerar como a Divindade, que parecia se esconder na paixão, aparece e se mostra agora tão milagrosamente na santíssima ressurreição, pelos verdadeiros e santíssimos efeitos dela” (EE 223)
Vejam como ele considera o Mistério Pascal na sua dupla face: Paixão/Morte e Ressurreição. Aponta para a explosão de Vida que se manifesta na Ressurreição do Senhor, em contraste com o Senhor que padece na sua humanidade na Paixão. Agora se revela definitivamente a personalidade divina do Crucificado. Considerar indica um movimento continuado e pausado de reflexão, ponderando serenamente o sentido, o valor, a importância do que se contempla. A consideração não ocupa um tempo limitado, podemos voltar a ela sempre que possível ao longo de nosso dia.
O segundo foco da lente com que Inácio contempla os mistérios pascais é um olhar: “mirar o ofício de consolar que Cristo N.S. realiza” (EE 224). Esse segundo movimento é mais passivo, chama à gratuidade do olhar que contempla extasiado, admirado, agradecido o que se apresenta aos nossos olhos. O foco é colocado no “ofício” que Cristo realiza, no seu modo de agir ao aparecer aos seus. E centra-se num desejo, numa atividade: consolar!
Ao contemplarmos os mistérios da Ressurreição, damos um salto para o que significa a verdadeira Vida, com toda a abundância de matizes que nos apresenta o Ressuscitado: superar as lágrimas, encher-se de paz, descobrir a presença de Deus na vida ordinária, amar sem medidas, enfrentar as decepções com esperança….
Processo espiritual que ocorre ao contemplar os Mistérios da Ressurreição:
A fé no Cristo ressuscitado repousa sobre testemunhos. Ninguém pretende ter visto o Cristo no próprio ato de sua ressurreição. A ressurreição de Jesus escapa, necessariamente, a todo olhar humano. Sua realidade pertence ao mundo novo, sobre o qual os nossos sentidos não têm nenhuma influência. Ela só se torna acessível a partir do impacto que pode ter em nossa história. As aparições pascais preenchem essa função1. As aparições pascais são apresentadas como o efeito de uma iniciativa de Deus a respeito de Cristo: ele o ressuscitou, ele lhe deu o poder de se manifestar. As aparições são uma graça, escapam ao domínio humano.
Na linguagem de Inácio, o Cristo ressuscitado é aquele que aparece. E cada manifestação da sua glória se torna um sinal divino, posto para sempre, e que se endereça a todos aqueles que o contemplarão, acolhendo o significado consolador e fortificante do sinal. Quando aparece, Cristo manifesta a economia da salvação no amor do Pai que arranca da morte, é a comunicação da vida divina potente e livre. Assim, cada contemplação das aparições nos coloca em relação à ressurreição eterna: ela é antes de mais nada uma visita do Ressuscitado, Daquele que vive para sempre! Mas ao interno deste mistério e desta manifestação de alcance universal, cósmico, cada um é chamado e tocado pessoalmente, no mais íntimo da sua vida concreta. A cada um, no seu estado de vida, a partir do ato pessoal de fé e de amor que o une a Cristo, o Ressuscitado confere uma participação íntima à sua vida divina, vitoriosa sobre o mal e a morte. Aparecendo aos seus discípulos, o Senhor os liberta para sempre da morte e confere a eles a alegria do amor: “Eles viram o Senhor!” e contemplaram Nele um mistério infinito de Amor: nada jamais poderá separá-los Dele (Cf. Rm 8,35.38-39).
James Corkery estudou[2] os diversos relatos das aparições e encontrou neles 4 traços comuns: uma mudança na atitude das pessoas, seguido por um reconhecer a Jesus, fato que frequentemente acontece em um ambiente de amizade e é acompanhado por uma mudança de ânimo e de direção. Vejamos mais de perto cada um destes traços característicos:
- Mudança de atitude (attitude transformation): Em diversos dos encontros com Cristo depois da ressurreição, uma chave de leitura está na mudança de atitude que permite reconhecer o Cristo ressuscitado. Isso se vê especialmente no quarto evangelho, quando nos referem as declarações de Maria no jardim: “Rabbuni” (Jo 20,16), de Tomé: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28) e as palavras do discípulo amado: “é o Senhor!” (Jo 21,7). O mesmo se encontra em Lucas no relato dos discípulos de Emaús que o reconhecem ao partir do pão. Na verdade se dá uma dupla mudança: há algo que muda em Jesus, assim que se faz reconhecer… mas também há algo que é preciso mudar nas testemunhas, a fim de que possam reconhecer e “ver” o Ressuscitado. Assim, Maria não podia encontrar o Ressuscitado enquanto buscava um cadáver. Os discípulos de Emaús não conseguiam reconhecer o Senhor enquanto eram tomados pela tristeza e pela falta de coragem. A experiência dramática da Paixão atingiu de modo tal os amigos e discípulos de Jesus que não foi nada fácil para eles dar o passo necessário para reconhecer a sua ressurreição. O exercitante faz uma experiência muito semelhante a esta. É conhecida a dificuldade que muitos deles experimentam ao passar da dor e tristeza da Paixão a um “alegrar-se intensamente” que Inácio faz pedir no tempo seguinte. Além disso, depois da eleição e com o aproximar-se do fim do mês de EE, o exercitante se sente quase levado a abandonar a oração, como se tudo já tivesse acabado. Muitas vezes também o cansaço se faz sentir depois de tanto esforço empregado antes. Uma outra atitude que pode se dar neste momento é que o exercitante se apega às coisas que ele já recebeu no retiro, fechando-se assim à novidade e à gratuidade que são necessárias para viver bem a experiência pascal. Basta recordar como as aparições do Ressuscitado apresentam sempre este caráter de surpresa para as testemunhas. Ora, todas estas atitudes do exercitante precisam ser transformadas a fim de que ele possa experimentar os efeitos da ressurreição.
- Reconhecer (recognition): Nos relatos das aparições, o Senhor Ressuscitado intervém nas vidas dos discípulos de uma tal maneira que lhes permite de reconhecê-Lo mediante uma associação com algo que eles antes tinham experimentado com Ele. Quantas vezes Maria tinha escutado Ele pronunciar o seu nome de um modo tão particular para não se esquecer nunca mais daquela voz? Experiência semelhante fizeram os dois discípulos de Emaús, quando Jesus partiu o pão. Aquilo que aconteceu na experiência destas primeiras testemunhas apresenta similaridades com aquilo que se dá nas pessoas hoje. Jesus deve mostrar que Ele está vivo agora, em meio às circunstâncias da vida do exercitante. E para poder ser reconhecido, o Senhor ressuscitado deverá fazer-se ver em um modo tal que mostre na vida do exercitante a sua Presença, o seu toque salvífico.
- Experiência de comunidade (Companionship) : um elemento importante dos encontros pós-ressurreição com o Jesus Ressuscitado é a companhia, a experiência de fraternidade, a presença do outro, da comunidade. Os discípulos precisam uns dos outros para poder ver quem realmente está ali presente agora. Este é o motivo mais óbvio no caso de Pedro, para quem o discípulo amado, vendo o milagre dos peixes é capaz de declarar: “É o Senhor!”. Os discípulos recebem a notícia das mulheres que voltam do sepulcro, dizendo: “O Senhor está vivo!”. Parece que o Senhor se faça ver mais facilmente, quando a pessoa não está sozinha. Nos EE, muitas vezes o acompanhante ajudará com discrição o exercitante a ver o Senhor vivo na sua vida, vencendo os seus medos e imobilidade.
- Mudança de ânimo e de direção (Change of mood and direction): a mudança é da tristeza à alegria. A alegria que caracteriza o encontro com o Senhor ressuscitado não é apenas um traço a mais a ser acrescentado aos outros três precedentes, mas é uma realidade que penetra todos os outros. O texto mesmo dos Exercícios dá um significado específico à alegria como sendo a graça desta etapa final. Nos textos do Novo Testamento, faz-se muita menção também à alegria: os discípulos de Emaús voltam a Jerusalém cheios de alegria (Lc 24,32.41). Maria de Magdala e as outras Marias se enchem de grande alegria (Mt 28,8) e correm para dar a boa notícia aos discípulos.
Paul Bony elenca como traços comuns dos relatos de aparição: a iniciativa de Deus, o reconhecimento e a missão[3].
Iniciativa: é sempre o Senhor Jesus que “vem” ou se fez presente no meio deles ou se aproximou. Os discípulos não o esperavam mais: estavam fechados no medo; tinham deixado Jerusalém; tinham voltado para a Galiléia e haviam retomado o seu antigo ofício. A aparição os surpreende em um contexto de angústia (Maria de Mágdala), de desesperança (Discípulos de Emaús), de noite e de impotência (pesca infrutífera). Estando fechadas todas as portas, “pos-se no meio deles”. Nada é falado sobre as modalidades dessa irrupção, mas o emprego desse verbo evoca a presença soberana do Senhor (cf. Gn 18; Ex 17,6).
Reconhecimento: A primeira reação é antes a do espanto, da perturbação e mesmo da dúvida: não é um fantasma? Os olhos dos discípulos de Emaús “estavam impedidos de reconhecê-lo”. Maria de Mágdala toma Jesus pelo jardineiro. A dúvida ficou na memória coletiva como um traço importante dos relatos de aparição pascal. É necessário que Jesus se faça reconhecer por gestos familiares. Conforme os relatos de Lucas e João, o sinal decisivo para o reconhecimento foi o das chagas do Crucificado. Aí se procedeu à verdadeira conversão: reconhecer o Senhor glorificado em Jesus de Nazaré, o Crucificado.
Missão: nos relatos de aparições coletivas, a estrutura é regularmente: reconhecimento -> missão. O reconhecimento é em vista da missão. As aparições de Cristo ressuscitado não são puros atos de conforto para discípulos desamparados e inconsoláveis, mas intervenções poderosas pelas quais o Cristo se apodera da palavra deles e os faz suas testemunhas.
Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] José Antonio GARCÍA, Ofício de consolar: recibir y transmitir la consolación de Dios, 271.
[2] James CORKERY, Apparitions and experience, The Way Supplement 99 (2000) 88-97.
[3] Paul BONY, A Ressurreição de Jesus, 73-75.