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Um serviço que se faz cada vez mais eclesial

Alfredo Sampaio Costa SJ

Muitos certamente carregam em si um genuíno desejo de servir, mas quando chega a hora de colocar em prática tal desejo, sentimo-nos confusos e indecisos. Pois certamente os apelos que nos chegam da realidade ultrapassam muito nossas poucas forças e capacidades. Ao querer abraçar o mundo todo, ficamos sem nada, desanimamos e perdemos coragem. Inácio, certamente, ao longo de sua vida de cavaleiro medieval, sonhou muito, mas chega uma hora, o tempo da maturidade, onde é preciso “aterrissar” dos nossos devaneios e encarnar nossa resposta possível.

 

A experiência de La Storta representa esse amadurecimento e abertura da experiência espiritual de Inácio. Para colhermos toda sua riqueza de significado, procuremos “desdobrá-la” da seguinte maneira: Trata-se sempre de um “Serviço”; Serviço de Cristo “carregando sua Cruz”; “na Igreja” hoje; em um grupo de companheiros; “para a glória de Deus e a salvação de todos “.

Em La Storta, o serviço desempenhado por Inácio tomará uma dimensão mais ampla e mais eclesial. O desejo de servir e os objetivos concretos desse serviço aparecem ainda imprecisos. Inácio está a ponto de entrar em Roma, e fica perplexo com o significado da promessa revelada a ele: “Eu vos serei propício em Roma”.  Como poderiam essas palavras fazer Inácio pensar na eventualidade de “talvez seremos crucificados?”[1].

Servir carregando a cruz: O ser tomado como servo de Cristo com a cruz às costas poderia faze-lo intuir que o serviço não se realizaria sem cruzes. Mas a impressão recebida durante a Missa lhe havia infundido no coração a confiança no momento mesmo em que ingressava na Cidade Eterna. Outros seus companheiros preferirão a fórmula “eu estarei convosco” para expressar as palavras da promessa feita a Inácio. Mas Laínez refere como palavras de Inácio “eu vos serei propicio em Roma”, e não lhe faltará a confiança, não obstante as duras provas que teria que enfrentar nos anos de 1538-39: uma perseguição encarniçada, e mais tarde a lentidão (muito compreensível) da comissão pontifícia encarregada de examinar o seu projeto de uma nova forma de vida religiosa. O Pai lhe será propício quando, em meio às contradições, dificuldades, fadigas apostólicas, contrariedades inevitavelmente ligadas à extensão do Reino, sustenta com sua fidelidade divina ao que correria o risco de perder a coragem. Como estariam seguros de trabalhar para Deus se não existissem os opróbrios, as ignomínias, os perigos, as adversidades[2]?

“Quero que tu nos sirvas” incorpora Inácio no plano de Deus, na sua obra salvadora no mundo, continuada segundo o estilo de Cristo pobre e humilhado, usando os meios do mesmo Jesus. “Que tu nos sirvas” significa a missão imediata da Igreja, o fim assinalado à Companhia de Jesus, que poderá tomar toda forma de ajuda ao próximo, nos 4 continentes então descobertos. Para mais além das dificuldades em Roma, os que receberam a promessa do Pai celeste feita na pessoa de Inácio se verão em dificuldades muito mais duras, obstáculos aparentemente invencíveis, “cruzes”[3]. Poderiam dizer, como o mesmo Pai Santo Inácio: “Mas Deus, para cujo serviço e glória são todos, esperamos proverá, como até aqui sempre fez, o que for necessário para as obras do seu santo serviço” (Carta a J. Doménech, de 7.4.1548).

À pergunta de como se poderia expressar o carisma inaciano em uma frase sucinta, responderíamos prontamente: com as palavras “Postos com Cristo, o Filho”.

 

Graça concedida a toda a Companhia: Assim atesta Nadal:

“Esta é uma graça especial concedida por Deus à Companhia. Cristo, ressuscitado entre os mortos, não morre mais, mas segue sofrendo a cruz nos seus membros. Por isso disse a Paulo: “por que me persegues?”. A isso, pois, Deus nos chama, a seguir a Jesus nessa milícia, levando cada qual a sua cruz, sofrendo por Cristo; isso é o que nos deve estimular e confortar: que seguimos a Cristo, feitos seus companheiros por meio de sua cruz. Pois que outra coisa Cristo nesse mundo quis e experimentou a não ser trabalhos, perseguições e cruz para a glória de Deus Pai e a salvação das almas? Desejemo-lo também nós, expondo se for preciso as nossas vidas pela salvação de nossos irmãos” (Monumenta Natalis I, 51-52).

Em uma conferência de 1557 ao Colégio Romano, Nadal se expressa assim[4]:

“De tudo isso concluímos que o fundamento da nossa Companhia é Jesus Cristo crucificado, para que como Ele redime o gênero humano por meio da cruz e padece diariamente grandes sofrimentos e cruzes em seu Corpo místico que é a Igreja, assim quem é membro da nossa Companhia não se proponha outra coisa senão, seguindo a Cristo através de numerosas perseguições, procurar a salvação das almas juntamente com o mesmo Cristo” (Fontes Narrativi II, 9-10).

 

Servir a Cristo pobre com a cruz debaixo do Romano Pontífice

A visão de La Storta que antecede o cumprimento da cláusula assumida pelos companheiros de se apresentarem ao Papa para que ele, como Vigário de Cristo na terra, os enviasse onde considerasse mais necessário, acrescenta um elemento que se tornará determinante na missão como Inácio a entenderá para sua Companhia. Cristo tinha enviado seus apóstolos a pregar. Agora o Cristo, visível em seu Vigário, como Inácio gostava de chamar ao Papa, seria aquele que enviaria de agora em diante os novos servos seus a semear pelos campos do Senhor[5].

A cláusula papal, que em Montmartre não passava de um último recurso, vem agora ocupar o lugar central. O voto de obediência ao Papa será chamado de “nosso principal fundamento”, constituindo a razão de ser da Companhia, como Ordem religiosa e, em segundo lugar, porque realiza o serviço de Cristo próprio da Companhia, o “ser colocado com Cristo”, tão desejado por Santo Inácio e tão encarecidamente suplicado.

O “Quero que tu nos sirvas” pronunciado pela Trindade virá agora da boca do Vigário de Cristo, na universalidade, mobilidade e disponibilidade primárias do novo Instituto no modo de proceder na sua missão. O serviço será “unicamente ao Vigário de Cristo na terra”. Não são dois serviços distintos, mas um só. “Vigário” é o que faz as vezes de outro. O Papa atua “em nome de Cristo” (Constituições da Companhia de Jesus, MI Const., I, 162). Transmite assim à Companhia a vontade de Cristo. Na sua voz – escrevia Santo Inácio ao bispo de Calahorra – “ressoa o céu e de nenhum modo a terra” (M.I. Epp.I, 241).

Abrir-se ao Papa que como Chefe da Igreja pode ter uma visão mais ampla e universal de quais são as necessidades às quais acudir é algo característico do carisma inaciano, expresso no chamado “quarto voto” feito ao Papa “acerca das missões”. Implica disponibilidade, humildade e desejo de colaborar em uma missão que nos ultrapassa grandemente. O serviço de Cristo ao qual a Companhia se dedica e com o qual se identifica o serviço de seu Vigário é total e ilimitado. Escreve o Padre Pedro Arrupe:

“Adquire significado pleno aquele “servir”, palavra tão característica de Inácio, que expressa o fim mesmo dos Exercícios e resume a oferta do Reino, das Duas Bandeiras, dos Graus de Humildade. Servir será consagrar-se por inteiro a serviço da Trindade como companheiro de Jesus na pobreza, na abnegação total de si mesmo, na cruz. Inácio entende o sentido profundo de sua vocação e da de seus companheiros e se sente não só chamado e admitido, mas além disso penetrado e transformado interiormente como o foram os apóstolos. O mundo necessita hoje de homens assim, com fé, fortes, desinteressados, confiados em Deus, dispostos a dar a vida pelos demais”[6].

Creio que, em tempos onde o Papa Francisco coloca toda a Igreja em ritmo sinodal, é importante sinalizar que a escuta se dá em todas as direções: o Papa como Vigário de Cristo escuta atentamente a toda a Igreja e nos convoca a buscarmos todos juntos qual o maior serviço que podemos prestar em cada situação.

Que todos nós que queremos viver o carisma inaciano possamos viver esta mística do serviço, à escuta do que o Papa Francisco nos convoca, buscando sempre mais irmos ao encontro dos mais descartados da sociedade, para, humildemente, nos colocarmos a serviço deles.

[1] Gervais DUMEIGE, “Yo os seré propicio em Roma”. “Yo quiero que tu nos sirvas”, La Visión de La Storta. Historia y Espiritualidad. CIS 19/1 (1988) 42.

[2] Gervais DUMEIGE, “Yo os seré propicio em Roma”, 44.

[3] Gervais DUMEIGE, “Yo os seré propicio em Roma”. “Yo quiero que tu nos sirvas”, La Visión de La Storta. Historia y Espiritualidad. CIS 19/1 (1988) 45.

[4] Gervais DUMEIGE, “La Gracia hecha al fundador para todos los compañeros”, La Visión de La Storta. Historia y Espiritualidad. CIS 19/1 (1988) 57.

[5] Pedro ARRUPE, Servir sólo al Señor y a la Iglesia, su esposa, bajo el Romano Pontífice, Vicario de Cristo en la tierra, Manresa 50 (1978) 198.

[6] P. ARRUPE, “La consagración de la Compañía de Jesús al Corazón de Jesús y la Visión de La Storta. Homilía en el “Gesù” de Roma, 9 de junio de 1902”, en En Él sólo… la esperanza. Selección de textos sobre el Corazón de Cristo. – I Centenario del nacimiento de Pedro Arrupe. 1907-2007, 14-17.

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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