Geraldo De Mori SJ
“Quem dera todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor pusesse o seu Espírito sobre eles!” (Nm 11,29)
A Igreja católica latino-americana se prepara para a realização de sua Primeira Assembleia Eclesial continental, entre os dias 21 e 28 de novembro de 2021, no santuário nacional de Guadalupe, no México. Apesar de habituados a ouvir falar de Igreja da América Latina, sobretudo por meio das referências aos documentos das Conferências de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida, que norteiam grande parte da ação evangelizadora no país e no continente, muitos católicos do Brasil ainda não perceberam a novidade dessa Assembleia convocada pelo Papa Francisco. Muitos pensam que se trata de mais um encontro de bispos, como os que organizou o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) em 1968 (Medellín), 1979 (Puebla), 1992 (Santo domingo) e 2007 (Aparecida). A novidade desse evento tem a ver com uma das redescobertas maiores do Concílio Vaticano II, posta em evidência pelo Papa Francisco.
Para os que se recordam do dia da eleição do Papa Francisco, é importante lembrar o gesto com o qual ele inaugurou seu pontificado: o pedido de oração ao povo que se encontrava na Praça de São Pedro, antes que ele mesmo o abençoasse. Muitas pessoas veem nesse pedido apenas um gesto de humildade ou a busca da simpatia da multidão, por parte de alguém que vinha do “fim do mundo”, mas, na verdade, trata-se de algo mais profundo. Ele não cessa de repetir e busca traduzir aquele gesto em um “programa de reforma” da Igreja, que a leve a leve a deixar a atitude de “manutenção”, para tornar-se “Igreja em saída”. Na verdade, trata-se de uma volta às fontes. O gesto do pedido de bênção ao povo reconhece que os que a ele pertencem possuem uma vocação comum, dada pelo batismo, tornando-os filhos e filhas do mesmo Pai, irmãos e irmãs no Cristo, santos e santas no Espírito. O desejo de Moisés, narrado no livro dos Números, de que “todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor pusesse nele seu Espírito” (Nm 11,29), realizou-se no mistério da cruz e ressurreição de Jesus e foi comunicado ao mundo em Pentecostes, atualizando-se a cada vez que alguém, pelo bastimos, mergulha no mistério da Santíssima Trindade. De fato, pelo batismo, todos são “enxertados” em Cristo” (Rm 11, 17. 24), tornam-se “novas criaturas” (2Cor 5,17; Gl 6,15; Rm 6,4-7). Infelizmente nem sempre essa vocação comum à profecia e à santidade é vivida conscientemente pelos cristãos e cristãs, que continuam delegando ao ministro ordenado não só a representação do ser cristão, mas também todas as funções principais na vida da Igreja. De muitas maneiras o Papa Francisco vem convidado a Igreja a recordar aquilo que ela é. A Assembleia Eclesial é mais uma oportunidade de viver isso.
De fato, em todos os sínodos que convocou até o momento, o Papa Francisco tem criado oportunidades reais de participação do “povo santo de Deus”. Em geral, quando um sínodo é convocado, além do tema proposto, são elaboradas várias questões para serem respondidas por todas as igrejas locais do mundo. Essa escuta deveria implicar não somente bispos, padres, religiosos, religiosas e seminaristas, mas todo o povo. Não é fácil realizar essas escutas, pois demandam muito tempo, energia, capacidade de diálogo, poder de síntese das principais contribuições recebidas, que depois são aproveitadas no Documento de trabalho, que orienta a assembleia sinodal. Foi assim com o sínodo da família, da juventude, da Amazônia. Assim será também com o próximo sínodo, que terá como tema justamente o método chamado de “sinodal”. A palavra sínodo vem do grego e significa “caminhar juntos”. O mundo ficou muito mais plural, as identidades locais estão muito mais aguçadas e demandam ser reconhecidas, as diferenças de idades, classes sociais e gênero levantam dificuldades enormes para a escuta qualificada e verdadeira. Contudo, se esse caminho não for trilhado, o processo de polarização e criação de muros será cada vez mais exacerbado e intransponível, levando famílias, grupos, sociedades, países e religiões à violência e à agressão mútua.
Ao convidar a América Latina para realizar uma Assembleia Sinodal, o Papa tem em mente a rica caminhada já trilhada na comunhão, sobretudo nas conferências realizadas pelo CELAM. Ao invés de convocar outro evento parecido, como estava sendo ventilado, em função de já ter se passado quatorze anos da Conferência de Aparecida, o Papa propôs uma Assembleia Eclesial, que implicará não só a presença de bispos, mas também de todos os seguimentos do corpo eclesial. Para preparar esse evento, como ele fez para os demais sínodos, está sendo realizado um momento de escuta, que deveria ter terminado em fins de junho, mas que foi prorrogado para o final de agosto. Todos e todas podem participar, em nome próprio, como batizado e batizada, ou em grupo. Talvez, o modo mais rico e significativo de participar seja o de grupos: catequistas, jovens, círculos bíblicos, grupos de oração, pastoral social, conselhos etc.
Por que participar e como participar? Enquanto membro do “povo santo de Deus” cada fiel deveria sentir-se interpelado a participar, a dizer sua palavra, exercendo assim sua vocação de “profeta, sacerdote e rei” recebida no batismo. A participação engaja, leva a apropriar-se do que é proposto, faz com que se diga a própria palavra. É fácil criticar a Igreja, como se fosse uma instituição que não nos implica. O mais difícil é criticá-la desde dentro, pois isso significa tomar parte dela, responsabilizar-se com o que se diz, para que ela mude e se torne cada vez mais a Igreja querida por Jesus de Nazaré. Nesse tempo em que muita coisa está acontecendo pelas redes sociais e pelos recursos da comunicação digital, tanto o CELAM quanto a CNBB elaboraram instrumentos de participação que são acessíveis a uma grande quantidade de pessoas. Para participar, basta clicar no link: https://www.assembleiaeclesial.com.br e buscar na aba “A escuta”, na qual são dadas informações de como participar, enviando à página da escuta. São oferecidas ainda pistas para preparar-se à Assembleia, através da oração, seguindo as atividades que que antecipam sua realização e as reflexões que dela deverão emergir.
Como Moisés no passado, a figura do Papa Francisco é hoje a que expressa de novo o desejo que implica o presente e o futuro da Igreja: “Quem dera todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor pusesse o seu Espírito sobre eles!”. Oxalá muitos que se dizem discípulos e discípulas de Jesus na Igreja católica exerçam essa profecia, movidos pelo Espírito, oferecendo o que têm de melhor para que a Igreja siga sendo sinal e fermento do reinado de Deus no mundo, tão necessitado de homens e mulheres que realmente testemunhem sua vinda através de gestos e palavras de vida e salvação.
Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE