Padre Alfredo Sampaio Costa, SJ
Para a perspectiva intercultural o “cultural” implica uma relação de horizontalidade democrática e não de verticalidade dominante com a cultura da sociedade envolvente. A revalorização das particularidades supõe também impulsionar os participantes a que entrem em um processo dinâmico de construção de uma identidade diferente às partes ou elaborar referências comuns e legítimas para os participantes. Considera-se que as relações interculturais implicam a aceitação de identidades ou as culturas plurais, o que, por sua vez, supõe reconhecer uma pluralidade de racionalidades e a heterogeneidade das formas sociais.
Estes aspectos requerem algumas considerações:
Em primeiro lugar, a pluralidade deve se manifestar em alguma forma de relação através de “vasos comunicantes” consciente e voluntariamente orientada a estabelecer relações com as “outras culturas”.
Em segundo lugar, a interculturalidade postula a heterogeneidade das maneiras de viver e que estas têm sua própria complexidade.
O pluralismo implica entre outras coisas tolerância, respeito dos valores alheios e, em definitivo, afirmação da diversidade e do dissenso, como valores que enriquecem o processo de constituição da sociedade e das instituições religiosas. Implica também um conjunto de crenças, relações sociais e políticas; isto é, as crenças estão diretamente relacionadas com uma cultura secularizada variada, que pode discrepar e estar disposta à mudança; a tolerância supõe a proibição do dogmatismo, o não fazer dano ao outro e a reciprocidade das partes.
O consenso pluralista se baseia em um processo de ajuste entre mentes e interesses discrepantes. É um processo de compromissos e convergência e contínua mudança entre convicções divergentes (Sartori).
Todos sabemos que a história é moldada pela dinâmica de oferecer e receber energias. O mesmo acontece na espiritualidade, quando a percebemos e a vivemos a partir da interculturalidade, cuja definição é precisamente a de partilha de valores, baseada no reconhecimento e no respeito mútuo das culturas.
1ª. Aceitar o outro, com todas as consequências. A primeira coisa que a interculturalidade nos pede é reconhecer o outro, com todos aqueles valores que a história constrói em cada cultura e em cada religião. E, a partir daqui, valorizá-lo, respeitá-lo e abordá-lo, até tratá-lo como um verdadeiro irmão. Esta posição redimensiona-nos, retira presunções, une-nos ao universo das culturas e leva-nos a perceber melhor a riqueza que Deus difunde em todas elas. Já não se trata da espiritualidade da conquista das almas para Deus, mas da troca de dons, que leva cada um de nós a reconhecer o dom maior que o outro tem em algum campo. Esta espiritualidade, mais cedo ou mais tarde, aproxima-se daquele dom “maior” que é Jesus, mas sem preocupações, sem imposições…
2ª. Saber oferecer nossos próprios dons aos outros. Isso significa que estamos convencidos dos conteúdos de amor, verdade e justiça deles e que demonstramos isso com nossa prática. É isso que endossa ou torna as nossas ofertas credíveis. A Divindade não está ausente deste processo, apesar de nossos maus exemplos. Ela vai esperar com paciência histórica para que aqueles que alteram o plano apareçam… Mas a história responsabilizará aqueles que, com pouca ou nenhuma capacidade de justiça, atrasarem o processo ético de seus respectivos grupos. Deus não ensina ou corrige a ética das culturas por conta própria. Se dependesse Dele, Ele o teria feito desde o início do aparecimento do homem. Mas Ele não o fez e não o fará, porque Ele queria um homem livre, e somente em um processo histórico, longo e evolutivo, o ser humano a partir de sua liberdade pode projetar sua ética … Num processo evolutivo, o ser humano continua a ser uma mediação necessária, não por causa de um poder superior ao de Deus, mas simplesmente porque Deus quis autolimitar o seu próprio poder, no maior exemplo de “kenosis” (humilhação) sem paralelo, para que o ser humano, construído sobre a liberdade, possa comunicar ao mundo, à medida que a sua história avança. verdade, amor e justiça. Reconhecer esses processos evolutivos em cada cultura só é permitido pela interculturalidade.
3ª. Convencer-nos de que no coração de Deus todos nós nos encaixamos. O perigo de toda teologia e espiritualidade é acreditar que se pertence a um grupo privilegiado, o único destinatário de uma revelação que anuncia para o mundo um fim no qual apenas o grupo escolhido será salvo. Este modelo de apocalíptico que muitas vezes se apodera das nossas consciências e que tanto prejudica, só é contrariado pela interculturalidade, que também nos permite ver os outros com direito à sua própria salvação. Ninguém pode ser excluído do amor de Deus. Aproximamo-nos d’Ele através daquele pequeno caminho de justiça que a nossa própria história abriu. Quem tem um caminho mais amplo e mais claro, participe dele, mas não destrua em Deus a sua capacidade infinita de salvar todos os seus filhos. É um fato inegável que todas as culturas e todas as religiões, sendo compostas de seres humanos, contêm falhas. Todos sabemos que Deus, na história humana, não destrói a injustiça que a nossa liberdade pode criar. Esta é a razão da existência de tanta injustiça no mundo: Deus é autolimitado pela nossa liberdade. E é isto que constitui a grandeza e a importância do ser humano na história: só Ele, seguindo livremente os ditames que Deus lhe oferece através da sua consciência, pode fazer avançar a história de forma ética. Pela mesma razão, devemos nos apresentar a outras culturas com consciência de igualdade, sem subjugação, sem intenções de conquista, com o respeito daqueles que oferecem algo que o outro verá se o aceitar, mas que não é condenado ou exposto a qualquer punição pelo fato de rejeitá-lo ou relativizá-lo. Nesse sentido, a interculturalidade nos purificaria de viver uma espiritualidade apocalíptica e condenatória, esquecendo nossos próprios fracassos e limitações.
4º. Interpretar nosso caráter missionário de uma nova maneira. O fato de nos apresentarmos ao outro como irmão ou companheiro, ou como ser humano igualitário, sem propósitos de conquista, não destrói aquele caráter de “enviado” que anuncia a conversão, que Jesus concedeu aos seus seguidores; O que ela procura é dar um novo significado à conversão de pessoas e culturas ao cristianismo. Oferecer a conversão pode ser lido como oferecer “atração”, que não carrega o fardo de ganhar o outro para a própria causa religiosa, mas de apresentar ao outro aquela força de atração que o projeto de Jesus tem, para ver se o outro quer construir o seu mundo a partir dessa perspectiva, a partir daquele fascínio oferecido por uma prática concreta de justiça. dos oprimidos. A partir daqui, o outro pode transformar a atração em mudança pessoal, ou afiliação institucional, mas a partir de sua liberdade. Nesse sentido, a interculturalidade nos fará viver nosso caráter missionário de maneira mais evangélica.
5º. Construir o credo da espiritualidade intercultural. Tudo isso nos ajuda a construir um credo intercultural, que pode conter estes ou artigos semelhantes:
– Cremos que todas as culturas são animadas pelo Espírito de Deus, que todas têm caminhos de verdade e exemplos de justiça, que em todas há muito a aprender porque carregam o selo do divino, embora também haja coisas a rejeitar, porque contêm o selo do humano, tudo, tudo sem exceção …
– Acreditamos que no mundo holístico, quântico e evolutivo em que nos movemos e que conhecemos um pouco mais e mais, Jesus – o Filho Unigênito do Pai – e o aspecto unitário e trino de Deus, podem ser oferecidos como valores incomparáveis a todas as culturas do mundo, para o seu crescimento espiritual …
– Cremos que a nossa Igreja Católica Cristã não perdeu e nunca perderá o valor da sua missão, porque precisa de missionários que anunciem Deus Pai e Jesus de Nazaré, seu Filho e nosso Irmão, como valores que pertencem ao mundo inteiro…
-Cremos que Jesus, Messias consagrado pela sua ressurreição, ratificou com a sua vida e morte o valor de todos os caminhos de justiça existentes na terra e levou à justiça o seu próprio compromisso, como homem e como Deus, da sua proximidade aos pobres e explorados, aos marginalizados e excluídos, aos pecadores e condenados e a todos aqueles que carregam a marca de algum tipo de opressão…
– Acreditamos que a ética baseada na justiça terá que ser a espinha dorsal de toda a humanidade no futuro, e que, neste sentido, todas as culturas e todas as religiões têm um papel igualmente decisivo e transcendental.
– Cremos que a Bíblia será sempre a Palavra de Deus para todo o universo, juntamente com muitas outras Palavras também de Deus, que ajudaram a justiça a aparecer e crescer em todas as épocas e em todos os cantos do mundo…
– Cremos que uma igreja que proclama a verdade e a justiça com lealdade e respeito, mas sem fanatismo, nunca terá suas tendas vazias, porque o amor, a verdade e a justiça sempre serão polos de atração para todo ser humano que busca crescer na humanidade. A melhor medida do valor e do crescimento de uma instituição não é tanto o quantitativo, o grande número, mas o qualitativo, o compromisso humanizador de seus membros.
– Acreditamos que devemos sonhar com um mundo construído sobre a fraternidade, para além das diversidades religiosas, e que devemos começar a trabalhar por ele a partir de agora, valorizando e respeitando uns aos outros, reconhecendo a verdade que todos temos, para que a confiança nasça, o respeito mútuo seja fortalecido e os valores de amor, verdade e justiça que todos têm sejam compartilhados…
– Acreditamos que todas as religiões do mundo terão de ser relativizadas, para dar lugar aos grandes valores que as animam e que muitas vezes não são apreciadas ou recebidas pelo envelope religioso-cultural em que são apresentadas e que os outros são forçados a aceitar…
– Cremos que tomar a interculturalidade como fonte de espiritualidade significa sentir-se evangelicamente livre para reconhecer todas as culturas e todas as religiões como mediações da vida, segundo a verdade que cada um oferece ao mundo, todos capazes de dar e receber, abertos a evangelizar e deixar-se evangelizar da justiça…
– Acreditamos que o ponto de partida da “espiritualidade da interculturalidade” é o das “verdades” que as culturas contêm, para chegar à “Verdade” que as anima a todas… Isto significa: que devemos estar conscientes de que não possuímos toda a verdade… que a Verdade está sujeita à assimilação histórica e evolutiva que cada cultura faz… que se fizéssemos um mapa da Verdade, ele seria distribuído; que se fôssemos colocar cor à Verdade, ela teria nuances diferentes; e que se puséssemos pele na Verdade, ela teria a pele e a cor de todas as etnias do planeta…
– Acreditamos que se compararmos o processo de inculturação com o da interculturalidade, poderíamos dizer: que a inculturação busca a assimilação da cultura do outro, mesmo que não alcance o reconhecimento da igualdade do outro… Por outro lado, a interculturalidade parte do reconhecimento da igualdade do outro, embora não atinja necessariamente a assimilação de sua cultura… Se perguntássemos às culturas qual das duas posições elas preferem, elas responderiam sem dúvida que preferem que as tratemos em pé de igualdade, mesmo que não imitemos a sua cultura, e não numa imitação da sua cultura que nunca reconhecerá direitos iguais à verdade, ao amor e à justiça.
A modo de conclusão: Todo processo intercultural deve ter a capacidade de expurgar os pressupostos inadequados que estão presentes nas ditas relações, com o propósito de removê-los, renová-los e superá-los acertadamente. Espero que a presente colocação tenha podido alertar para certas situações, políticas, que geram desconforto e podem levar a crises e a saídas da instituição. Sempre o objetivo é tomar consciência, poder conversar abertamente sobre a realidade e buscar – juntos – os melhores caminhos para seguir o carisma a que somos chamados.
Padre Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE