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Uma existência que nasce e se realiza na escuta da Palavra

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Geraldo De Mori SJ

“Toda a Escritura é inspirada por Deus e proveitosa para ministrar a verdade, para repreender o mal, para corrigir os erros e para ensinar a maneira certa de viver” (2Tm 3,16).

O mês de setembro de 2021 é marcado por um jubileu importante para a Igreja católica do Brasil: os 50 anos do “Mês da Bíblia”. A iniciativa, que teve origem na Arquidiocese de Belo Horizonte, foi muito importante no processo de renovação eclesial vivido no país a partir do Concílio Vaticano II, em grande parte inspirado e alimentado pela leitura das Sagradas Escrituras. De fato, após um longo período de acesso limitado aos textos bíblicos, por parte do conjunto dos fiéis, a Dei verbum, Constituição conciliar sobre a Divina Revelação, embora já antecipada pelo movimento bíblico, colocou toda a Igreja à escuta da Palavra divina, e isso se deu de diferentes maneiras nesses 50 anos.

Algumas iniciativas pastorais, visando o acesso do conjunto dos fiéis às Sagradas Escrituras, merecem ser recordadas e valorizadas no contexto dos 50 anos do Mês da Bíblia. A primeira, conhecida como leitura popular da Bíblia é, provavelmente, a mais original. Associada, em seus inícios, à figura de Carlos Mesters, que a elaborou sob o influxo do método ver, julgar e agir, da Ação Católica, foi adotada pelos círculos bíblicos, conhecidos também em outros lugares como “grupos do evangelho” ou “grupos de reflexão”. Esses grupos articulavam fé e vida, assumindo de modo crítico a realidade na qual se encontrava o fiel, que era relida à luz da Palavra divina. Grande parte do modelo eclesial gestado pelas Comunidades Eclesiais de Base e pelas pastorais criadas na Igreja católica durante esse período foi profundamente fecundada por esse tipo de abordagem.

Nesse método, o leitor/ouvinte da Palavra devia, como gesto primeiro, dar-se conta do “lugar” a partir do qual lia os diversos textos que lhe eram propostos para refletir. Esse “ver” já era movido pela fé, embora, para sua melhor compreensão, nesse primeiro momento, as chaves para o captar e entender também lhe eram fornecidas pelas ciências sociais. A leitura do “texto”, que então se seguia, também era marcada por informações de elementos importantes do contexto no qual ele foi redigido, a que problemas ou questões respondia. O confronto entre o “lugar” do leitor/ouvinte e o “texto” lido/proclamado, provocava então um novo significado para quem o lia/ouvia, dando-lhe novas referências para viver e agir. Em geral, esse modelo de leitura da Palavra divina era comunitário. Algumas de suas variantes, como a do MOBON (Movimento da Boa Nova), iniciado na diocese de Caratinga, em Minas Gerais, e espalhado em outras dioceses, além dos encontros nesses pequenos grupos, promoviam uma partilha da reflexão feita, em “plenários”, realizados mensalmente. Em muitos lugares também foram criadas “escolas bíblicas”, que ajudavam as lideranças dos grupos no trabalho de animação, contribuindo para uma grande penetração da Bíblia na vida. O Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), inspirado pelo método de Mesters, ajudou a difundir essa leitura, através da elaboração de subsídios e formação de agentes.

No contexto dos 500 anos do início da evangelização das Américas (1992), a Conferência dos Religiosos da América Latina (CLAR), elaborou o Projeto Palavra e Vida, que se estenderia por vários anos, recolhendo muitos elementos da leitura popular da Bíblia e os associando com a tradição da lectio divina, iniciada há séculos nos mosteiros e adaptada para ser utilizada pelo conjunto dos fiéis desejosos de serem iluminados pela Palavra divina. Dessa conjunção nasceu o método da “leitura orante da Bíblia”, que, além de articular fé e vida, acrescentava uma dimensão mais contemplativa e existencial à leitura da Bíblia, acolhendo assim a nova sensibilidade que emergia no mundo latino-americano a partir da década de 1990. No Brasil, esse método foi amplamente difundido, inspirando, desde então, não só a vida religiosa consagrada, mas também a vida dos/as cristãos/ãs desejosos/as de acercar-se do horizonte de sentido da Palavra de Deus. Apesar de manter o acento comunitário e crítico, esse método deu maior lugar ao indivíduo, cuja importância crescia cada vez mais na sociedade e também nas igrejas.

Esses dois métodos de leitura da Bíblia são profundamente originais e conferem ao texto bíblico aquilo que ele pretende ser na vida de quem os lê à luz da fé: atualidade, significado, relevância, não só numa perspectiva espiritualista e individualista, mas comprometida com as várias dimensões da vida e com forte acento comunitário. Outros métodos de aproximação do texto bíblico coexistiram no Brasil nesses 50 anos. Um deles, que também marcou sobretudo os movimentos eclesiais influenciados pela Renovação Carismática Católica (RCC), tem como principal mérito ter difundido o uso das Sagradas Escrituras no processo de evangelização, colocando o fiel à Escuta da Palavra revelada. A ênfase dogmática e, por vezes, fundamentalista, por um lado, e a perspectiva espiritualista, por outro, nem sempre contribuíram para formar pessoas adultas na fé, com presença relevante e crítica nos distintos processos de transformação social. Certo viés moralista, muitas vezes focado na dimensão do pecado, nem sempre contribuiu para criar uma consciência mais aberta às diferenças e ao pluralismo que marca as sociedades contemporâneas, tornando muitos desses grupos presas fáceis de discursos autoritários e das pautas de costumes que caracterizam a política do país hoje.

A Igreja católica do Brasil tem procurado de muitas maneiras incentivar o acesso à Bíblia dos fiéis. As últimas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora (DGAE) têm insistido muito na “animação bíblica” da evangelização, da vida e da formação cristãs, tentando, dessa maneira, contribuir para que a Bíblia possa realmente tornar-se na existência de todos os fiéis aquilo que ela que ser: Palavra de Deus, ou seja, um apelo a entrar numa relação com Aquele que é o ponto de partida e o ponto de chegada da vida de fé. De fato, a fé vem da escuta de uma palavra, que não é palavra humana, mas divina, apta para conduzir à verdade plena, para corrigir os erros, indicar o caminho a seguir. Oxalá toda a Igreja do Brasil, que tanto descobriu nesses 50 anos de frequentação assídua da Palavra divina, redescobrindo sua centralidade em sua existência, possa descobrir novos meios para falar aos homens e mulheres desse tempo, marcado por tantas mudanças, mas ainda sedento de uma palavra digna de fé, que edifique e ilumine.

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

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