Geraldo De Mori
A Igreja Católica, junto com várias Igrejas cristãs membros do CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil), participam, na quaresma deste ano de 2021, de mais uma Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE). Paradoxalmente, o que está em jogo nesta CFE, a fraternidade e o diálogo, é posto rudemente à prova pelas polêmicas desencadeadas nas últimas semanas por diversos grupos, dentro e fora da Igreja, semeando confusão, escândalo e desorientação na cabeça dos fiéis e das pessoas que de fora seguem as discussões acaloradas contra e a favor da CFE de 2021. Este texto não tem a pretensão de “jogar mais lenha na fogueira”, mas quer ser uma contribuição no aprofundamento da intenção profunda do tema escolhido para preparar-se para celebrar o “grande mistério da fé” cristã, neste ano: a paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré.
Já há alguns anos o mundo e o Brasil experimentam um processo de polarização de origem política, social, cultural e religiosa. Sob muitos pontos de vista, discordar é constitutivo da existência humana. De fato, a dissenção é a assinatura da diferença e, neste sentido, é extremamente positiva. São muitas as diferenças a partir das quais há discordância nos grupos humanos: sociais (ricos e pobres), gênero (homem e mulher), étnicas (brancos, negros, amarelos), religiosas (cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, budistas, tradições religiosas afro e ameríndias), familiares (pais, filhos, irmãos). Essas discordâncias fazem surgir a originalidade e a particularidade, e isso, em si, não é negativo, pois pode aportar uma nova perspectiva a determinado debate ou ponto de vista. Nem sempre, porém, a diferença, com as discordâncias que suscita, é experimentada como enriquecimento, sendo muitas vezes vivida como oposição e ameaça, tornando-se então rejeição, intolerância e violência, como o atesta a dramática história da humanidade.
Certos períodos da história humana são mais acolhedores das discordâncias introduzidas pela diferença e outros mais intolerantes. A primeira metade do século XX, por exemplo, foi marcada pelas guerras mundiais que eliminaram milhões de pessoas em nome de interesses de todo tipo (étnicos, ideológicos, econômicos etc.). Já na segunda metade desse mesmo século, parecia que a abertura a acolher a diferença havia vencido. Contudo, desde que ingressamos no século XXI, vivemos várias “guerras aos pedaços”, como tão bem se expressa o Papa Francisco. Essas guerras não se reduzem apenas aos conflitos entre nações, grupos étnicos e religiosos, mas se introduziram no coração mesmo das sociedades plurais e hipertecnológicas que compõem boa parte do mundo atual. Somos muitas vezes seus promotores ou difusores, por meio das redes sociais e das campanhas de todo tipo que buscam tornar o outro inimigo porque não pensa como nós.
Em grande parte, a última encíclica do Papa, Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, quer ajudar os cristãos e todas as pessoas de boa vontade a mergulharem na riqueza que é a diferença, com todas as discordâncias e ameaças que pode representar, apontando o caminho que conduz à sua acolhida e ao enriquecimento mútuo que pode provocar. Digno de nota nessa encíclica, que também se encontra no tema e no lema da CFE de 2021, é o texto bíblico a partir do qual o Papa busca aprofundar o tema da fraternidade e da amizade social: a parábola do bom samaritano. O próximo do homem espoliado e jogado à beira do caminho, segundo a resposta do doutor da lei à pergunta de Jesus, foi aquele que “usou de misericórdia com ele” (Lc 10,37). Esse texto é fundamental para se pensar o incômodo das inúmeras discordâncias suscitadas pela diferença do outro.
No Texto Base da CFE de 2021, o lema remete a Ef 2,14a: “Cristo é a nossa paz. Do que estava dividido fez uma unidade”. Nessa passagem, Paulo recorda o “muro” construído no templo de Jerusalém, que separava o espaço reservado aos pagãos (gentios) do espaço reservado aos judeus. Segundo o Apóstolo, em Cristo esse muro foi derrubado, do que estava dividido ele fez uma unidade. Em Gl 3,27, “Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus”, Paulo é ainda mais radical. Ele evoca não só a diferença religiosa, como a que aparece na parábola do Bom Samaritano, que é a base bíblica da encíclica do Papa Francisco, mas também a diferença social (escravo e livre) e de gênero (homem e mulher), mostrando como o ter sido revestido de Cristo pelo batismo, provoca uma mudança radical, que elimina tudo o que na diferença é motivo de separação, ódio, violência, guerra, intolerância, inimizade.
Só nos enriquecemos com as discordâncias da diferença se nos abrirmos ao diálogo. Este é o convite da CFE de 2021. Portanto, mais que nos deixar “distrair” pelos falsos argumentos que pretendem salvar uma suposta “catolicidade” da fé, urge, nesse tempo de quaresma, acolher o convite ao diálogo. A verdadeira fraternidade só é possível se nos abrirmos à acolhida daquilo que o outro possui como próprio, único, que me é oferecido como dom, da mesma maneira que eu, ao entrar em diálogo com o outro, me torno oferenda para que ele possa acolher-me e enriquecer-se com aquilo que lhe ofereço.
O caminho do diálogo não é, porém, fácil. Todos sabemos o quanto é difícil “abrir mão” do que Santo Inácio de Loyola chama do “próprio querer e interesse”. Sob muitos pontos de vista queremos impor nossa opinião, nosso ponto de vista, nosso jeito de ser e de fazer. Nem sempre estamos dispostos a viver no cotidiano os processos implicados no verdadeiro diálogo, temos muita dificuldade de “dar o braço a torcer”. Cientes disso, as igrejas cristãs que fazem parte do CONIC, inserem a dinâmica do diálogo na conversão, para a qual esse tempo da quaresma nos convida, preparando-nos para a celebração do mistério pascal, no qual Cristo reconciliou consigo o que estava dividido.
Oxalá possamos aproveitar a oportunidade única que nos é dada com essa CFE, destruindo os muitos muros que nos separam e criam inimizades e construindo espaços de reconhecimento e enriquecimento mútuos, nos quais experimentamos o sentido da paz!