Uma reflexão sobre o livro “O despertar de tudo: uma nova história da humanidade”

advanced divider

Bruno Pettersen

Uma das buscas fundamentais da História da Filosofia, em especial da Antropologia Filosófica e da Política, é a existência de uma natureza humana. Respostas variadas foram dadas ao longo dos últimos dois milênios, passando por Platão e Aristóteles, Agostinho e Aquino, e tantos outros. Na modernidade, essa questão passou pela pena de Thomas Hobbes, no seu Leviatã, e por Jean-Jacques Rousseau, no seu Do Contrato Social. A resposta hobbesiana destaca que o ser humano é essencialmente mau, violento e egoísta, enquanto Rousseau apresenta um ser humano bom e livre como fundamento de sua natureza. Em um certo sentido, depois desses dois autores, o debate passou a ser se a nossa percepção da natureza humana, em especial em um estado anterior à formação das primeiras cidades, era hobbesiana ou rousseauniana. Mas será que é possível estabelecer uma natureza humana uniforme por toda a história da humanidade? Há uma natureza humana?

Para tentar responder a essa e outras questões, em 2021 foi publicado o que considero ser um jovem clássico: O Despertar de Tudo: uma nova história da humanidade, escrito por David Graeber (antropólogo, EUA, 1961–2020) e David Wengrow (arqueólogo, Reino Unido, 1972–). A obra apresenta como argumento central a crítica à narrativa tradicional sobre a origem das desigualdades e do Estado. Nesse livro, os dois autores reconstroem inicialmente como as ideias de Hobbes e Rousseau nos influenciaram nas narrativas sobre a história e o presente da humanidade. Mas a análise deles da história humana, à luz de recentes achados da antropologia e da arqueologia, indica que não há realmente uma natureza humana boa ou má, e que essas ideias são um mito explicativo criado a partir de simplificações da condição humana. Ao contrário, o comportamento humano, quando estudado a partir dessas descobertas, mostra que somos muito mais diversos, com comportamentos múltiplos que não podem ser reduzidos à bondade, à maldade ou a qualquer outro conceito que reduza nossa condição.

Ao contrário também de Hobbes e Rousseau, a ideia de uma sociedade humana que surge a partir de debates sobre a propriedade parece pouco produtiva para compreender a multiplicidade humana. Diferentemente da percepção atual de que a propriedade está no centro da compreensão do ser humano, sociedades pré-escrita e antigas não eram passivas diante das condições materiais: elas refletiam, debatiam e escolhiam modos de vida que podem ou não se vincular à propriedade privada (ou mesmo a outras relações como poder, dinheiro, sexualidade e religiosidade). Muitas vezes, compreendiam algo que hoje a maior parte da sociedade perdeu: em alguns momentos decidiam estabelecer a propriedade, em outros momentos optavam deliberadamente por não ter qualquer propriedade. Ao contrário do mito narrativo presente em teorias como a liberal e a marxista, nem sempre a propriedade foi o foco de sociedades ou grupos humanos. Nesse sentido, a propriedade não parece ser algo inscrito em nossas almas, mas uma decisão tomada em certos momentos históricos.

Além disso, o argumento deles mostra que essa concepção mais fluida da natureza humana e da propriedade não implica que as comunidades antigas fossem mais simples, cognitivamente humildes ou limitadas. Pelos dados apresentados ao longo do livro, os relatos antropológicos e arqueológicos indicam que essas comunidades pré-escrita eram perfeitamente capazes de articular pensamentos sofisticados e até de produzir grandes obras, mesmo sem sociedades centradas na agricultura ou nas cidades. É o caso de Göbekli Tepe, assentamento datado de antes das primeiras cidades e até mesmo da agricultura. Segundo os autores, existiram cidades sem Estado, sociedades hierárquicas sem violência, comunidades que alternavam sistemas políticos conforme as estações do ano. Esse ponto não é tomá-las como ingênuas, mas reconhecê-las como sociedades que não se limitavam às nossas percepções estreitas.

Em um certo sentido, o grande argumento do livro é que ficamos tão obcecados com posições filosóficas, como as de Hobbes e Rousseau (e tantas outras), que não percebemos o quanto a natureza humana é plural e complexa. Essa visão abre espaço para pensar que a organização política e econômica atual não é inevitável nem natural, mas fruto de escolhas históricas que poderiam ter sido diferentes. Talvez o primeiro passo seja compreender que simplificações filosóficas sobre a natureza humana podem nos ajudar a pensar, mas que teorias como as de Hobbes, Rousseau, Marx ou Smith devem ser entendidas como aquilo que são: esquemas interpretativos. Já fomos mais complexos e podemos ser de tantas outras formas quanto nossos antepassados foram um dia. Não se trata de qual é a melhor forma de vida, mas de reconhecer que, no fim, nada se resume a uma única forma de compreender a humanidade.

Esse livro, O Despertar de Tudo, deve ser lido e relido por todos nós, como convite para libertar nossa imaginação política e repensar radicalmente as possibilidades de ser humano.

Bruno Petttersen é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

21/08/25

...