Geraldo De Mori, SJ
“Bem-aventurados, porém, são os vossos olhos, porque veem, e os vossos ouvidos, porque escutam!” (Mt 13,16)
A etapa continental do sínodo sobre a sinodalidade foi recentemente concluída na América Latina e Caribe com a realização dos quatro encontros que compõem a região: América Central e México, em El Salvador (13-17/02); Caribe, na República Dominicana (20-24/02); Zona Bolivariana, em Quito (27/02-03/03); Cone Sul, em Brasília (06-10/03). Entre 17-20/03, na sede do CELAM, em Bogotá, reuniu-se a equipe nomeada pelo CELAM para elaborar a Síntese continental, a ser enviada, até o final de março, para a Secretaria Geral do Sínodo. Compunham a equipe: D. Miguel Cabrejos e D. Jorge Lozano, Presidente e Secretário do CELAM; P. Pedro Brassesco, Sec. Adjunto do CELAM; P. Giacomo Costa, da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos; Maurício López e Oscar Elizalde, da Comissão de Método da etapa continental e do serviço de comunicação do CELAM; Ir. Liliana Franco e Ir. Daniela Cannavina, presidente e secretária geral da CLAR; Ir. Dolores Palencia e Ir. Iris Altagracia, respectivamente animadoras dos encontros das regiões América Central e México, e Caribe; Pedro Paulo Weizenmann, leigo voluntário em serviço no Vaticano; membros da Comisión de Reflexión Teológica do CELAM: Carlos Galli, da Argentina; Rafael Luciani, da Venezuela; Agenor Brighenti e Geraldo De Mori, do Brasil; Ricardo González, do México; Jaime Mancera, da Colômbia; Birgit Weiler, do Peru.
O método utilizado nos vários encontros regionais da etapa continental foi o da “conversação espiritual”, inspirado na prática do “discernimento comunitário”, tal qual o propõe a tradição da espiritualidade inaciana. Inicialmente esse método provocou certa surpresa, pois a alguns parecia levar a certo subjetivismo, pelo lugar que nele ocupa o sentimento. De fato, os participantes foram divididos em grupos, denominados “comunidades de discernimento”, compostos por bispos, padres, religiosos/as e leigos/as. O conteúdo do Documento da Etapa Continental (DEC) foi trabalhado em três momentos: um para as intuições, outro para as tensões e outro para os horizontes abertos por cada parte do DEC. Cada momento, por sua vez, deveria ser trabalhado em três tempos: um para as intuições, outro para as tensões e outro para os horizontes ou consensos. Em cada um desses tempos, por sua vez, se dedicava um momento para que cada membro da comunidade pudesse dizer o que o texto lhe havia provocado, seguido dos ecos que essa partilha despertava nos demais, concluindo com o que era o sentir comum, percebido pela comunidade como aquilo para o qual o Espírito a conduzia. Segundo uma síntese sistemática do método, partia-se do eu, através do que o texto havia provocado em cada um; passava-se ao tu, que era o que a partilha de cada um havia suscitado nos membros da comunidade; e chegava-se ao nós, que era o consenso.
A comissão que elaborou a síntese continental dedicou um tempo para refletir sobre esse método, confrontando-o com o método habitualmente utilizado na pastoral e na reflexão teológica latino-americana e caribenha desde Medellín: o método ver, julgar, agir. Percebeu-se que mais que se oporem, eles podiam se fecundar mutuamente, pois enquanto o método da conversação espiritual tinha como base a escuta de cada participante do grupo, confrontando-a com escuta da Palavra de Deus, tendo em vista discernir o que o Espírito diz à Igreja, o método privilegiado na América Latina e o Caribe partia de uma leitura dos “sinais dos tempos” (ver), interpretando-os à luz das Escrituras e da tradição da Igreja (julgar), tendo em vista uma ação que respondesse ao ver iluminado pelo julgar (agir). Observou-se também que em muitos de seus textos o Papa Francisco, sem opor os dois métodos, fala de “escutar”, “discernir”, “decidir”, que, no fundo, aprofunda o que a América Latina e o Caribe entendem como “ver”, “julgar”, “agir”.
Em que esse “confronto” e fecundação mútua de métodos pode iluminar o dia a dia dos fiéis e de suas comunidades de fé? O que está em questão em cada um, como se pode ver, é a busca da vontade de Deus, definida pela visão ou pela audição. De fato, ao começar pelo ver, a ênfase será dada à análise da realidade, pelo recurso às ciências mais adaptadas para isso. No início, a teologia da libertação deu preferência às ciências sociais, mas aos poucos foi ampliando o ver, utilizando os saberes próprios a cada “sinal dos tempos”, como foi no caso para a reflexão sobre a economia, a ecologia, as lutas pelos direitos das mulheres, dos povos indígenas e afrodescendentes. O segundo momento, o do jugar, já é indicativo do que o ver provoca, a saber, rejeição do que atenta contra a dignidade humana, o meio ambiente, os mais pobres e vulneráveis etc. Mas o ver apontava também o horizonte para o qual deveria convergir o agir: o reino de Deus.
O método da conversação espiritual começa com a escuta da realidade, ou seja, também ele parte de uma “leitura” dos “sinais dos tempos”. Nesse sentido, não há oposição, mas mudança de ênfase. O ver é mais analítico, o escutar é mais relacional, pois se trata se entrar num diálogo com as alteridades implicadas no processo, sejam as que se escondem por detrás dos grandes temas que provocam dor e sofrimento, ou alegria e esperança, sejam as que estão diretamente envolvidas no momento em que se realiza a conversação. A escuta, para ser real, exige da parte de quem dela participa capacidade de silêncio, de empatia, de saída de si para acolher o que o outro diz, mesmo não concordando com ele. Sem esse pressuposto, é impossível qualquer diálogo. A esse primeiro momento segue-se o segundo, que também é feito de escuta, cuja função primeira não é a de um juízo, mas a de um discernimento, que certamente tem também uma dimensão de juízo, mas que é guiada pela escuta do que Deus diz nas Escrituras e na tradição eclesial e que pode iluminar o que se escutou no primeiro momento, para que a decisão a ser tomada, possa também responder à vontade divina: o reino de Deus.
Uma das maiores demandas da etapa da escuta proposta pelo sínodo, seja a que veio das comunidades de cada país, seja a que foi reiterada pelos que participaram da etapa continental, é a de ser escutado. Essa demanda é fruto do atual momento pelo qual passa a humanidade, feito de confrontos que têm produzido muitas “guerras aos pedaços”, de solidão, à qual tantas pessoas foram relegadas no tempo da pandemia, e de uma dificuldade enorme de parar para dar atenção ao outro, por conta da aceleração na qual vivem as pessoas nas sociedades complexas, urbanas e tecnológicas do séc. XXI.
A experiência da maioria das pessoas que participaram da etapa continental é que o método da conversação espiritual funciona, que ele é adaptado para viver uma igreja sinodal, que caminha realmente com as pessoas, é capaz de sentir suas “dores e sofrimentos, suas alegrias e esperanças” (GS 1). Muitos manifestaram o desejo de já propor para suas comunidades de fé esse método. Sem ignorar a grande contribuição do método ver, julgar e agir, percebeu-se que sua releitura e utilização pode em muito ser enriquecida com o método da conversação espiritual e que este, relido à luz do método ver, julgar, agir, pode em muito contribuir para que o caminho da Igreja seja cada vez mais sinodal, tornando-a companheira de rota de tantos homens e mulheres necessitados/as de escuta, para que a humanidade possa buscar a reconciliação e a paz.
Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE