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Vida espiritual vivida na fé

Alfredo Sampaio Costa SJ

Nossa vida espiritual se exprime num conjunto de práticas e sobretudo de atitudes e é centrada na atenção e na relação de amor que nos une a Deus. Essa atenção amorosa é a expressão de um ato de fé. Assim pois, nossa vida espiritual jorra de um ato de fé na realidade de nossa relação com Deus cuja revelação foi-nos feita pelo Cristo que nos dá o meio de realizá-la nele. Toda a vida cristã é fundada na fé, mas a importância da fé aparece sobretudo quando “a vida espiritual” se desenvolve. Sem a fé nossa vida espiritual definharia e acabaria por morrer.

Na experiência mística a mais elevada como também na vida de oração a mais comum, sempre necessitamos fazer uma experiência de fé. Como anda a nossa vida de fé? Cremos verdadeiramente no Amor e na Misericórdia de Nosso Senhor para conosco? Uma vida espiritual sólida só se desenvolve se ancorada numa fé firme.

A fé e a percepção do termo da relação

Na experiência de oração, como podemos afirmar que tocamos algo do Mistério de Deus? Só na fé!

Toda relação humana funda-se numa confiança que repousa num ato de fé. Quando brotam os primeiros sinais do amor, eles nos incitam a um conhecimento mais profundo do amado/a. Se não houver, porém, uma resposta às primeiras tentativas que deem continuação às primeiras, será impossível chegar a uma confiança recíproca. O reconhecimento do alcance de um gesto ou de uma palavra será fruto de uma resposta inicial.

De fato, quantos não abandonam a vida espiritual exatamente por essa falta de respostas? Como é importante manter viva a lembrança dos primeiros sinais, do Amor primeiro e suas expressões! Procure fazer memória dos sinais do Amor primeiro do Criador por você!

É necessário que aquele a quem é dirigida uma solicitação se comprometa na sua resposta com suficiente verdade para poder captar o alcance do apelo que lhe é proposto. Deve ter uma confiança “provisória”, a qual, após a experiência, vai-se transformar em confiança. De fato, uma relação de confiança não se constrói de uma hora para outra. Assim, os dois vão aprender a se conhecerem e irá aos poucos sei estabelecer uma linguagem mútua que acabará por revelá-los um ao outro, até o dia em que, de certeza em certeza, com as dúvidas e os recuos necessários, cada um terá a garantia da sinceridade do amor do outro.
A experiência mística genuína não tem como fruto um mero sentimento interior de paz e quietude. Ele provoca na pessoa uma atitude, uma resposta de amor e de compromisso.

Finalmente, o último passo será dado como um ato de entrega total, quando todas as experiências tiverem conferido uma certeza tal e cada um possa se arriscar totalmente nessa relação amorosa. Todavia, no passo final, há uma entrega de si ao outro num ato de confiança que supera em alcance e intensidade todos os atos anteriores. Dá-se uma percepção do coração do outro só concedida à confiança, portanto, a um ato de fé (1) . Compreendendo isso, entenderemos as experiências místicas de muitos santos, vividas como um “intercâmbio de corações” ou “matrimônio místico”.

Como é gratificante encontrar pessoas com uma fé viva e atuante! Sentimo-nos fortalecer na nossa fé muitas vezes titubeante. Crer implica uma confiança total que engaja a existência inteira. Não é simplesmente a adesão a uma doutrina, porque essa doutrina é “vida” e se encarna na existência cotidiana. O despertar da fé se processa, geralmente, de maneira progressiva, como no caso da Samaritana (cfr. João 4).

Paradoxalmente, na experiência mística ao mesmo tempo que somos tocados pelo Inefável, tal toque provoca em nós um desinstalar-se progressivo que nos abre à transparência do Mistério que contemplamos e que se faz presente no nosso cotidiano.

Confiar, um desafio contínuo para nossa fé

O ato de fé na pessoa de Cristo não pode ser pronunciado sem uma graça do mesmo Deus. Já existe na relação humana com Cristo uma ação divina desse mesmo Cristo que nos torna possível e desejável o ato de fé em sua divindade. Se não aceitamos engajar-nos na relação, será impossível ao Cristo, pelo menos normalmente, iluminar-nos sobre a veracidade do seu mistério. O primeiro ato de confiança compromete-nos numa relação que é um “risco assumido”. Corremos, nesse caso, o risco da fé. Podemos dizer que a fé alcança o valor de um conhecimento objetivo. Foi aceita como “a verdade de Outro”, uma verdade, uma realidade acreditada na palavra de Alguém. Não se trata, pois, de um mero sentimento. É importante perceber bem esse caráter “objetivo” do conhecimento de fé. Movemo-nos sempre no âmbito de uma relação amorosa com Alguém!

Nosso ato de fé não é fruto de uma experiência, não é uma impressão subjetiva, tampouco uma projeção do nosso inconsciente. É a crença em Cristo, Filho de Deus, através da palavra de homens que o conheceram. Eles caminharam com Ele, por vezes dolorosamente, e o resultado de sua experiência é aceito por nós como uma verdade objetiva. Confiamos neles e, assim procedendo, fazemos um ato de fé no Cristo. O ato de fé faz-nos entrever outro mundo. No próprio ato de fé temos vislumbramos e, de certo modo, tocamos Aquele que é o termo de nossa relação!

Como viver a vida interior na fé

Quando dizemos a Cristo: “Eu creio em Ti”, que acontece? Aparentemente, nada de extraordinário; no entanto, algo se modificou. Somos interiormente introduzidos num mundo novo, aquele que o Cristo nos revela. Aceitamos que Deus seja para nós o “Pai”, um Pai que faz de nós, filhos e filhas seus. Acompanhando as palavras de Cristo, descobrimos um mundo extraordinário que é o mundo interior de Deus-Trindade.
É esse mundo novo que se abre diante de nós que somos chamados a penetrar na vida espiritual. Portanto, a experiência mística nada tem de alienante nem de egoísta, enquanto ela nos faz penetrar no mais profundo do mundo e da História para captar ali a Presença Amorosa da Trindade na sua missão de redenção.
Somos chamados a nos mantermos numa atenção reverencial diante do Mistério, perscrutando o que nossa inteligência pode compreender da realidade que Cristo coloca sob nossos olhos. Mas, para cada intuição que é luz para nós, descobrimos um abismo de sombras que insistem em permanecer envoltas no mistério. Apoiando-nos no que entendemos, permanecemos em silêncio diante do que se mantém incompreensível.

Um conhecimento novo

Nesse ponto do processo da fé podemos dizer que ultrapassamos o mundo de nosso conhecimento humano. É oferecido ao homem um modo de conhecer que supera suas forças comuns. É perfeitamente compreensível que assim seja, visto o objeto da fé ser o mistério de Deus e só Deus poder falar de si mesmo e fazer-se conhecer. Nesse novo modo de conhecer, nossas faculdades normais se dilatam, atingindo novas possibilidades.

Quando aceitamos crer no que Cristo nos diz, produz-se entre Ele e nós uma misteriosa comunicação. Nossa faculdade de conhecer torna-se mais ampla, mais profunda. Sob a influência do Cristo, as possibilidades do compreender e do amar, até então ocultas, são-nos repentinamente reveladas (Ef 3, 14-21). Podemos assim constatar que a adesão ao Cristo, num ato de fé, leva-nos a fazer uma dupla descoberta: a da profundidade de Deus e as profundidades do coração humano. Quando acedemos a esse modo de conhecimento pela fé, podemos ter a rápida intuição dos espaços interiores infinitos que a fé nos poderá, um dia, fazer descobrir (2) .

Esse mergulho profundo no interior de nós mesmos e no mundo é o que somos chamados a contemplar nos místicos, cuja experiência espiritual possui um grau de pureza e transparência que nos permitem captar com mais clareza aquilo de, ainda de uma forma obscura e confusa, também se dá dentro de nós.
Quando falamos em conhecer pela fé, não estamos falando de compreender máximas ou definições. Falamos de um conhecimento experiencial. Trata-se de entrar em contato com uma realidade viva que chamamos Deus. A fé tende, pois, não para um conhecimento, mas para uma vida. Sendo assim, deve-se tornar uma “experiência”, “uma fé viva, vivida”.

Quando dizemos isso, queremos mostrar que a fé deve ser integrada na nossa experiência humana. É verdade também que não alcançaremos esse conhecimento sem uma graça de Deus, mas esse conhecimento deve, finalmente, ser “nosso” e deve entrar no campo normal de nossa atividade de conhecimento. Nossas faculdades são abertas e aprofundadas pela graça de Deus. Essa abertura e aprofundamento não se processam num dia, precisamente porque esse modo de conhecimento permanece “humano”.

Alfredo Sampaio Costa é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

1 – Yves RAGUIN, Atenção ao Mistério, 39.

2 – Yves RAGUIN, Atenção ao Mistério, 49.

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