Elton Vitoriano Ribeiro, SJ
A dimensão narrativa da vida humana sempre foi objeto de estudo da filosofia. Compreender que as nossas vidas são constituídas narrativamente, que narrando nos interpretamos e interpretamos o mundo, é essencial para os humanos. Para os filósofos, as narrativas transformam nosso ser-no-mundo em um estar-em-casa. Nas palavras de Alasdair MacIntyre: “Sonhamos em forma de narrativas, devaneamos em narrativas, recordamos, duvidamos, planejamos, reconsideramos, criticamos, inventamos, mexericamos, aprendemos, odiamos e amamos por meio de narrativas”. As narrativas formam comunidades. Elas não são postas arbitrariamente por uma única pessoa, mas surgem a partir de um processo complexo de relações nas quais diferentes forças e atores estão envolvidos. As narrativas fomentam a empatia, exigem escuta e atenção profunda, acontecem na paciência do demorar-se diante do outro. Existe uma sabedoria incorporada na vida narrada. Viver é narrar!
Para o filósofo Byung-Chul Han, corremos um grave perigo ao trocarmos, nas sociedades capitalistas neoliberais contemporâneas, as narrativas pelo simples acúmulo de informações. No ensaio A crise de narração (2023), ele argumenta que a crise de narrativas das nossas sociedades se deve ao fato de que o mundo atual está inundado de informações. Para ele, o espírito e o propósito das narrativas estão sendo sufocados por um tsunami frenético de informações que fazem com que nossos órgãos de percepção estejam permanentemente estimulados. Assim, a própria realidade passa a ser moldada por informações e dados. O neoliberalismo é o regime da informação inteligente e sedutora. As plataformas digitais, Twitter, Facebook, Instagram, Tiktok, Snapchat, etc, são aditivas e não narrativas. Elas exigem que nos comuniquemos constantemente. Exigem que postemos, compartilhemos e curtamos o tempo todo; nossas opiniões, nossas preferências, nossas necessidades. É o reino da transparência digital, da estimulação, do controle e da exploração. Somos transformados em consumidores vorazes de informações que nos prometem vivências especiais. De forma aditiva, o capitalismo digital é o novo panóptico contemporâneo: quanto mais dados forem coletados sobre uma pessoa, melhor ela poderá ser monitorada, controlada e, obviamente, explorada economicamente. Assim, é criado o reino da autorrealização, do sucesso, do desempenho e da produtividade. Nossas agendas são esvaziadas de significados, nos lembrando, apenas, de uma imensa sucessão de eventos: trabalho – lazer – produção – consumo.
As narrativas, diferente da mera informação que é aditiva e cumulativa, é portadora de sentido, de direção e de história. As narrativas exigem de nós um olhar atento e atencioso à realidade e aos outros. Um olhar lento, longo e demorado. Isso é importante porque o narrador não explica nem informa. A arte de narrar exige que as informações sejam diminuídas e as explicações reduzidas. Narrar exigem paciência e ócio. Narrar é um jogo de luzes e sombras, de entrelaçamento entre o visível e o invisível, de proximidade e distância, de sons e silêncios. As narrativas possuem o poder de gerar, sempre e de forma inédita, novos começos. Ela nos abre aos modos de vida, às percepções e às realidades outras. Nós, humanos, somos capazes de nos reinventar e reinventar a sociedade por meio de novas narrativas, portadoras de sentido e de finalidades. As narrativas são mais eficazes do que os fatos, as informações e os números porque são encharcadas de emoções e afetos, recordações e memórias, sonhos e desejos. Como insiste o filósofo Charles Taylor, somos animais que se autointerpretam narrativamente: “Defino quem eu sou ao definir a posição a partir da qual falo na árvore genealógica, no espaço social, na geografia das posições e funções sociais, em minhas relações íntimas com aqueles que amo e, de modo também crucial, no espaço de orientação moral e espiritual dentro do qual são vividas minhas relações definitórias mais importantes”.
Finalmente, toda narrativa é política porque apenas uma vida narrada pode gerar comunidade e sociabilidade. A política como busca do bem comum para a coesão social, talvez uma quimera dos clássicos, só possui suas condições de possibilidade postas em um mundo narrativamente humanizado. E essa é uma tarefa eminentemente filosófica. Como afirmou Giorgio Agamben: “Os filósofos, como os poetas, são, sobretudo, os guardiões da língua [e das narrativas] e esta é uma tarefa genuinamente política, ainda mais numa época, como é a nossa, que busca com todos os meios confundir e falsificar o significado das palavras”. Portanto, viver é narrar, e essa é uma ação política.
Elton Vitoriano Ribeiro, SJ é professor e pesqisador no departamento de Filosofia, e reitor da FAJE