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Do silêncio ao êxtase

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Geraldo De Mori SJ

a nossa luta não é contra o sangue e a carne, mas contra os principados, as potestades, os dominadores deste mundo tenebroso, os espíritos espalhados pelo espaço” (Ef 6,12).

 

Na tradição cristã, o início de novembro é marcado por duas celebrações litúrgicas que parecem se sobrepor, mas que estão fortemente relacionadas: a festa de todos os santos e santas, no dia 1 de novembro, celebrada no Brasil no domingo seguinte, caso o dia 1 não seja um domingo; a comemoração dos fiéis defuntos, celebrada no dia 2 de novembro, que no Brasil é feriado e marcado por muitas visitas a cemitérios e celebrações nas Igrejas, recordando os parentes e amigos que já partiram.

As duas cerimônias recordam o “fim” do ser humano. A primeira, o fim visto como finalidade, que, no caso da fé cristã, é identificada como plenitude, dada pela ressurreição e pela “visão beatífica”, das quais os “santos e santas” já gozam. A segunda lembra o fim como término, que coincide com a morte, da qual a primeira experiência de todos, sobretudo as mais marcantes, é a da perda de pessoas próximas que “terminaram sua corrida” nesse mundo, deixando, nos que ficam, a saudade e o caminho difícil do luto, que permite a quem o faz, acolher a separação, a perda, o adeus.

Silêncio e êxtase parecem expressar bem o que está em questão nessas duas cerimônias do início do mês de novembro. Silêncio frente à comemoração do Dia de Finados, que remete à “assinatura da finitude humana”, dada pela morte e sua misteriosa inevitabilidade. Êxtase para a esperança na “comunhão dos santos, na ressurreição da carne e na vida eterna”, confessada a cada domingo pela assembleia litúrgica ao rezar o Símbolo dos Apóstolos, que, nada mais é do que acreditar que a morte é passagem para uma plenitude “que olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam” (1Cor 2,9).

Em 2022, essas duas comemorações acontecem no Brasil em meio a vários distúrbios provocados pelos que não aceitaram o resultado do segundo turno do pleito para Presidente do país. Já no dia 31, em meio a outro tipo de silêncio, o do candidato Presidente que perdeu as eleições, vários grupos de seus apoiadores começaram a bloquear as grandes vias de circulação do país, impedindo que os caminhoneiros entregassem as mercadorias que transportavam e que os ônibus realizassem seus trajetos, com a intenção clara de desestabilizar o país. Segundo muitos observadores, esses bloqueios contaram com a anuência da polícia rodoviária, sinalizando para algo grave. A breve palavra dita pelo mandatário do país, mais de 40 horas depois do resultado das eleições, ao invés de chamar à ordem, mostrou-se conivente com os realizadores dos bloqueios. Para piorar a situação, no dia 2 de novembro, feito em geral de silêncio, em honra dos “fiéis defuntos”, muitos grupos foram para as ruas protestar contra o resultado do pleito, numa clara manifestação antidemocrática, chamando as forças militares a intervirem, seguindo devaneios de mentes doentias para as quais somente o que diz o suposto “mito” a quem seguem é portador da verdade e do poder.

O chamado para ir às ruas foi em muitos lugares feito por lideranças religiosas, sobretudo evangélicas, embora tenha contado também com a presença de grupos e pessoas que se dizem católicas. Trata-se de uma clara demonstração de cegueira, surdez e irracionalidade, pois, apesar da diferença no resultado ser pequena, em toda democracia, o que conta é o voto da maioria, nem que seja a de um único voto. Deixar-se levar por discursos que colocam em dúvida as regras da democracia é abrir-se ao autoritarismo, tantas vezes insinuado nos discursos do perdedor das últimas eleições. Em nome de suspeitas infundadas ou de uma injustiça que, na verdade, caso tenha acontecido, beneficiou o próprio Presidente candidato, que se utilizou de toda a máquina para reeleger-se, quem segue seus desvarios parece ter renunciado a pensar.

O silêncio e o êxtase, ao qual o início do mês de novembro convida e conduz aos que são enraizados na tradição cristã, que confessa sua esperança na plenitude da vida que não se acaba e que por isso é capaz de acolher a finitude da própria existência, num gesto de humildade frente ao mistério da morte, são mais do que necessários nesse momento da vida nacional. O ruído das “fake News”, das buzinas e dos gritos insanos dos que não aceitam que o outro possa vencê-los ou ter razão, impede certamente todo diálogo, tão necessário nesse momento, caso se queira construir um nós coletivo com um mínimo de civilidade. Somente o silêncio poderá abrir espaço para os que parecem ter renunciado a pensar, aceitando tornar-se seguidores de “fábulas” ou de “mitos” que não têm sustentação na realidade, preferindo por isso produzir mentira e levar ao desvario. Do silêncio poderá irromper o “êxtase”, que é justamente a saída, de si, do mutismo enganador, que faz “lavagem cerebral” para que, mais que cidadãos, as pessoas se tornem “massa de manobra”, seguindo discursos que podem ser assassinos.

Segundo muitos antropólogos, um dos primeiros sinais de irrupção do humano no processo evolutivo que conduziu dos símios ao que hoje se denomina homo sapiens, é justamente o cuidado dos mortos, atestado pelos ritos funerários, pela construção de túmulos e de cerimônias próprias para os mortos. É interessante que essa experiência é tão importante que os maiores monumentos já construídos são justamente monumentos funerários. Estão aí as pirâmides para o comprovar. O respeito aos mortos e aos antepassados, feito de rituais diversos em cada cultura, é sinal de humanização. O mundo cristão, ao associar o culto aos santos e santas e a memória dos fiéis defuntos, mostra que só se é capaz de acolher a finitude dada pelo silêncio da morte se a travessia do silêncio se deixa visitar pelo êxtase de um sentido que “é mais forte do que a morte”.

Essa capacidade de silêncio, atestada pelo silenciar-se diante da morte e da perda, é uma via pedagógica para todas as demais perdas que cada pessoa possa experimentar ao longo da vida. Ela é também a condição para que cada um/a experimente o êxtase. Ninguém nasceu somente para vencer. Num dos hinos cristãos mais antigos isso é dito do próprio Deus, que, em Jesus, não se “apegou” à condição de existir em forma divina, mas se humilhou, se abaixou, tomando a condição humana, e, mais ainda, a condição humana em sua forma mais precária e humilhante, a do escravo, aceitando ser pregado numa cruz. Por sua humildade, Deus o exaltou e lhe deu o nome que está acima de todo nome (Fl 2,6-11), ou seja, ele conheceu a plenitude do êxtase. Esse é o caminho para quem se diz seguidor/a de Jesus de Nazaré e cristão/ã, sobretudo nesse tempo tão insano, em que o inimigo parece ter de tal forma cegado a mente de tantos pretensos evangelizadores e fiéis, que os levou a anunciar e aceitar como “messias” aquele que é seu adversário, a potência diabólica que divide, confunde, cria inimizades, utilizando-se do nome divino para alcançar seus fins. Somente o silêncio despertará à verdade, levando as pessoas a enxergar de novo e a pensar, aceitando o limite, reconhecendo no outro o próximo a acolher e amar e não o inimigo a eliminar.

 

Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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