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Florescer

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Marília Murta de Almeida

Chico Buarque, nas três versões da canção “O que será”, nos oferece um caminho para pensarmos sobre o que nos move e nos aquece. Aquilo que não tem remédio, nem medida, nem cansaço, nem descanso, nem governo, nem limite e nem juízo. Aquilo de que talvez já nem se tenha tanto a falar, depois de mais de um século de psicanálise e outros tantos séculos de filosofias, mas que segue perturbando o poeta e a gente toda. O que nos agita e atiça. O que nos bole por dentro, à revelia.

O que faz de nós o que somos. Segundo o exegeta Paul Beauchamp, no relato bíblico da criação do ser humano podemos já nos entender como o ser do desejo. Criados pelo desejo do Criador também portadores de desejo, temos, como Ele, potência criativa. Tanta, que pretendemos ser como Ele. Forçamos nossos limites, queremos ser mais do que somos. Mas é isso precisamente o que somos: o ser movido pelo desejo que o leva a querer ser mais do que é. De modo que, paradoxalmente, podemos dizer que se nos bastássemos no que somos, não seríamos propriamente o que somos.

Ser que está sempre por se fazer, mas que só se faz quando movido pela potência de desejo que o move. Se o desejo murcha, se esvai também o horizonte em que podemos nos fazer. Se o desejo é contido, contém-se também nossa propulsão para ser. Se o desejo parece ter morrido, é nossa vida mesma que está ameaçada.

Mas quando o desejo irrompe cortando o caminho, como as águas de um córrego que de repente jorram arrebentando as margens, nosso corpo parece sucumbir. Usando os verbos do Chico, o desejo nos atiça, agita, atraiçoa, queima, perturba; nos faz tremer, arder, suar; nos faz tentar dissimular, recusar, conciliar. Nos sentimos desacatados ou doentes de uma folia.

A palavra desacato nos ajuda a compreender. Somos atingidos em nossa soberania. Porque o ser do desejo é também o ser da racionalidade. O controle racional corre o risco de desabar frente à avalanche que nos adoece e desacata. E que, despudoradamente, nos expõe. O ser do desejo, quando deseja, se revira ao avesso e mostra ao mundo o que lhe corre na carne.

Carne que possui em si um vulcão cuja cratera só se cala na morte que esfria suas brasas, como nos diz o poeta místico Pedro Casaldáliga em seu poema “Paz armada”, cujo subtítulo é “Aviso prévio para jovens que querem ser celibatários”. O braseiro da nossa carne não cessa de nos aquecer e atiçar, enquanto tivermos em nós o calor da vida.

O aviso do poeta para os jovens celibatários é também aviso para todos nós que vivemos em corpo e sangue. Não é só a castidade que nos põe em estado de paz armada frente ao que nos bole por dentro. E não é só o desejo por outros corpos o que nos queima por dentro. O que dá dentro da gente e que não devia nos lança com força imprevista em direção ao mundo todo e nos põe em risco constante de deixar transbordar um a mais de vida que assusta a nós mesmos e ao outro que nos vê e ouve.

Aquilo que tentamos dissimular é o que nos põe a viver como que num tom acima do que devíamos. Com um impulso a mais, um vibrato a mais, com a voz veemente demais ou o olhar agudo demais. Uma vida na tonalidade desconfortável da paixão.

Segundo o teólogo e filósofo Kierkegaard, a fé é a paixão do pensamento e qualquer forma de paixão é um aprendizado para a fé. O pensamento que se apaixona é o que é capaz de crer. De outra parte, toda forma de paixão contém em si uma crença. Ou uma confiança. Apaixonar-se e viver de acordo com isso seria então confiar e se pôr a caminho.

Suportar o desacato que fragiliza a vida racional e seguir com a força propulsora do que o bole por dentro configura assim o caminho do ser do desejo na radicalidade exigida para a sua realização máxima. E assim se percebe a improcedência da cisão entre a vida das paixões e a vida religiosa, que nossa cultura pretendeu realizar, e se pode escutar melhor no final da versão “À flor da terra”, de “O que será”:

Que todos os avisos não vão evitar

Porque todos os risos vão desafiar

Porque todos os sinos irão repicar

Porque todos os hinos irão consagrar

E todos os meninos vão desembestar

E todos os destinos irão se encontrar

E mesmo o Padre Eterno que nunca foi lá

Olhando aquele inferno, vai abençoar

A bênção do Pai Eterno se fará na compreensão de que, quando vivemos no inferno da paixão, realizamos aquilo que nos foi dado ser: um ser que deseja e que apenas por meio da vivência desejante no mundo pode florescer.

Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora no departamento de Filosofia da FAJE

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