Jaldemir Vitório, SJ
O tempo litúrgico da Páscoa confronta os cristãos e as cristãs com o cerne de sua fé, a Ressurreição de Jesus de Nazaré, como palavra de aprovação do Pai dos Céus para uma existência toda pautada no serviço compassivo à humanidade. A maldade dos inimigos, ao condená-lo à morte dos malditos e dos marginais, foi devidamente desmontada. O “maldito” foi proclamado bendito; o “marginal” foi acolhido como Filho querido e constituído modelo de fidelidade absoluta ao querer divino, do qual não arredou o pé um só milímetro.
A celebração da Páscoa, centrada no tema da luz e da água, ao recordar o batismo cristão, torna-se um apelo premente para quem se dispõe a viver o discipulado do Reino com a mesma qualidade e coerência do Mestre de Nazaré, que não poupou a própria vida. A beleza da liturgia, mormente a da Vigília Pascal, longe de lhe ofuscar o sentido profundo, deveria servir de aguilhão para as consciências adormecidas por uma religiosidade vazia, mesmo nos chamados “católicos praticantes”. Sim, há quem identifique a prática da fé com devoções e ritos desenraizados dos apelos do Reino a apontarem na direção da caridade, da prática da justiça, do cuidado com os mais fragilizados, do esforço de viver reconciliado, do empenho em criar igualdade e respeito ao diferente nas relações interpessoais, e, também, da preocupação com a sustentabilidade da Casa Comum. Em outras palavras, a apontarem na direção da Páscoa!
A espiritualidade pascal torna-se realidade na existência dos discípulos e das discípulas de Jesus de Nazaré, quando os leva a passar de uma fé acomodada a uma fé engajada, da indiferença no trato com o próximo ao cuidado com os mais carentes, das divisões e das intolerâncias à convivência respeitosa com todos e todas, do elitismo excludente de largas faixas da população à criação de uma sociedade onde haja comunhão e participação, da destruição da Casa Comum ao respeito pela Criação, da qual depende a sobrevivência da humanidade.
A Ressurreição de Jesus deve ter como desdobramento a Ressurreição de cada discípulo e discípula. Somos desafiados a ressuscitar com o Ressuscitado, para não cairmos no trágico equívoco de cantarmos a vitória do Crucificado, por obra do Pai, enquanto vivemos na morte, sem qualquer motivação para dar o passo na direção da vida e sermos como ele. Se somos “filhos e filhas da luz” (1Ts 5,5), por que haveremos de viver e de caminhar nas trevas? Se somos “filhos de Deus” (1Jo 3,10), por que viver como filhos do maligno e da maldade? Se somos seguidores de quem é a “Verdade” (Jo 14,6), por que viver na mentira, propagando fake news? Se fomos destinados a ter “vida em abundância” (Jo 10,10), por que preferir a morte com suas muitas faces macabras? Se nossa vocação consiste em produzir “os frutos do Espírito” (Gl 5,22-23), por que nos bandearmos para a mundanidade, a banalidade e a vulgaridade? Se somos convidados a “nos alegrarmos no Senhor” (Fl 4,4), por que preferirmos o que causa tristeza, tribulação, angústia e sofrimento? Se o nosso “Deus é amor” (1Jo 4,16), por que optar pelo egoísmo narcísico que se fecha à comunhão e à sinodalidade?
O exame de consciência em torno de nossa Ressurreição pode se desdobrar de infinitas maneiras. Só os discípulos e as discípulas autênticos se dispõem a levá-lo a sério, com o propósito de experimentar na carne os desdobramentos da Ressurreição do Senhor. Tal exercício se espera de quem tomou consciência do seu batismo e nutre o desejo de vivê-lo com radicalidade, como expressão efetiva da Ressurreição. Então, sim, poderemos cantar: “banhados em Cristo, somos uma nova criatura, as coisas antigas já se passaram, somos nascidos de novo”.
Jaldemir Vitório, SJ é professor, pesquisador e diretor do departamento de Teologia da FAJE