Geraldo De Mori, SJ
“Nem todo o que me diz: ‘Senhor! Senhor!’ entrará no reino dos céus, mas só aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” (Mt 7,21)
A primeira quinzena de junho de 2023 foi marcada por três eventos de caráter multitudinário: as cerimônias de Corpus Christi, celebradas pela Igreja católica do país, com procissões sobre as ruas, confecção de tapetes, muita fé e devoção; as marchas para Jesus, que reuniram milhões de pessoas, em muitos lugares no mesmo dia em que os católicos celebravam o Corpus Christi, como expressão de uma presença massiva dos evangélicos em muitas ruas pelo país afora; as paradas LGBTQIA+, que em 2023 ocorreram no domingo que se seguiu ao Corpus Christi, inundando as ruas de pessoas que lutam pelo direito à diversidade sexual, contra preconceitos e por reconhecimento.
A coincidência desses três eventos no tempo aponta para aquilo que muitos intérpretes da sociedade brasileira identificam como, por um lado, a sedimentação do pluralismo da sociedade e da religião no país, e, por outro lado, a presença da religião no espaço público do Brasil. Certamente as paradas do orgulho LGBTQIA+ não têm relação direta com as duas grandes expressões da religiosidade nacional, mas são também espelho das grandes mudanças culturais que perpassam o tecido social da nação.
Em 1978, Roberto da Matta, um dos grandes intérpretes do Brasil do final da segunda metade do século XX, publicou o livro “Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro”, no qual estuda os três “rituais” a partir dos quais a sociedade brasileira dramatiza seus valores globais, críticos e abrangentes, traduzindo através deles seu “dilema”, como bem diz o subtítulo da obra. Os rituais que melhor expressam o que é o Brasil e seu povo, segundo ele, são: as paradas militares, sobretudo as realizadas no “Dia da Pátria”, que recordam o acesso à “maioridade” do país enquanto nação, mas também simbolizam a ordem, a institucionalidade, o poder da autoridade; o carnaval, que é a transgressão, a fantasia (real e fictícia), pela qual o mundo é invertido, tudo se torna possível, encarnando bem o povo enquanto entidade abrangente em contínuo devir; as procissões, que chamam para um outro tipo de interrupção da temporalidade, pois convidam para o contato com o sagrado, colocando no mesmo lugar autoridades e povo, santos e pecadores, pessoas sãs e pessoas enfermas, tendo as igrejas como as instituições a partir das quais o acesso a essa temporalidade é vivenciado.
A leitura de Roberto da Matta é muito mais abrangente e a sociedade brasileira diversificou-se sobremaneira desde a publicação de sua obra, mas, os três grandes eventos evocados acima parecem, sob muitos pontos de vista, expressar algo desses “rituais” através dos quais a identidade brasileira se dramatiza. Algumas adaptações “semânticas” necessitam, porém, ser feitas nessa aproximação, pois os nomes que “dizem” esses eventos são, sob certo ponto de vista, “transgredidos”, designando outra coisa que os termos utilizados pelo grande intérprete do “dilema” brasileiro. Isso se dá, sobretudo, com relação aos termos “marcha” e “parada”. Com efeito, as procissões do Corpus Christi continuam ritualizando a identidade católica, congregando ao redor do sacramento da “presença real” do Cristo, todos os fiéis católicos, de todas as condições sociais e em todas as situações existenciais. Isso não se dá, porém, com as “marchas”, que, embora tenham se consolidado como expressão ou ritualização da identidade evangélica, portanto, aproximável do sentido das procissões, uma vez que encarnam o “sagrado” tal qual os evangélicos o concebem, na verdade possuem também um caráter próximo ao das “paradas” cívicas do que era o Dia da Pátria, uma vez que são uma forma de afirmação política de uma identidade, com suas pautas de costumes e sua crescente politização, atraindo políticos, o que remeteria para o âmbito do poder. Algo parecido acontece com as “paradas”, cujo termo remeteria justamente ao âmbito militar do Dia da Pátria, mas, na verdade, são uma expressão “carnavalesca” de uma identidade transgressiva, como a dos LGBTQIA+, o oposto do que se ritualiza nas paradas militares.
O que essa possível atualização dos “rituais” que dizem quem é o Brasil e seu povo põe como questão à teologia? Primeiramente, através das procissões, que o grande “mistério da fé”, como é identificada a hóstia consagrada pelos católicos, ainda encontra a adesão de milhões de fiéis fascinados por sua “ostensão” pública, convidando à adoração. Os especialistas dizem que a religião nasce justamente do sentimento do “sagrado” ou do “santo”, como tão bem aparece no episódio da sarça ardente (Ex 3,1-6), provocando em geral “temor” e “tremor”, dando origem às experiências temporais do “sagrado”, que é justamente aquilo que é separado em relação àquilo que é “profano”. O sagrado atrai, sobretudo através do olhar. Daí seu caráter de manifestação ou revelação.
As marchas não só apontam para o advento desse novo sujeito da “religião” no Brasil, que é o mundo evangélico, mas também para sua diversidade, expressa na pluralidade enorme que o caracteriza, e sua busca de afirmação, com um viés político importante. Não se trata de um sujeito que se contenta em ficar no interior das igrejas, mas que ocupa as ruas, numa verdadeira marcha, e que não pode ser ignorado. Seu crescimento em número e importância na sociedade, mais que atemorizar, como parece acontecer em muitos católicos, tanto entre os fiéis quanto no seio da hierarquia, deveria interrogar a Igreja. Por que o que eles propõem em termos de experiência de fé atrai mais que o que o que a Igreja propõe? Mais que novas guerras de religião, como as que ocorreram depois da Reforma no século XVI, é importante, em tempos de pluralismo e de diálogo ecumênico, descobrir o que os evangélicos podem ensinar à Igreja e em que podem enriquecê-la. Não para fazer o mesmo que eles fazem, mas, talvez, para descobrir como ir ao encontro daquilo que os homens e as mulheres de hoje necessitam, e oferecer-lhes, como diz o Papa Francisco, a “alegria do evangelho” que salva e dá vida.
As paradas, que não nascem do mundo religioso, mas são, provavelmente, um dos movimentos sociais que mais atraem pessoas para os eventos que organizam, com reivindicações por direitos, reconhecimento, luta contra preconceitos, o fazem através de expressões que recordam os “carnavais”, ou seja, transgredindo o que seria o “normal”, o “correto”, segundo certos padrões estabelecidos pela sociedade. Não pelo gosto de transgredir, mas para indicar o que, talvez, continua sendo um dos enigmas mais profundos do ser humano, sua capacidade de amar, seu desejo, que não se esgotam nas diversas formas em que se expressam. As igrejas cristãs contribuíram em muito para transformar as diversas manifestações da diversidade sexual suspeitas ou pecaminosas. Mais que reiterar esse tipo de atitude, elas são chamadas a se perguntarem sobre o olhar e os gestos que seu Mestre e Senhor lhe pede num tempo de tamanhas transformações.
Talvez o símbolo através do qual o mundo católico celebra o amor de Deus na semana que se segue ao Corpus Christi, o do Sagrado Coração de Jesus, possa ser o lugar teológico para pensar as novas formas de manifestação e revelação do sagrado no mundo contemporâneo, fazendo-o de tal modo que responda à necessidade de salvação e sentido, e não esquecendo que o Deus que se revelou no coração transpassado do Crucificado provoca-a a se reinventar para ir ao encontro de todas as dores do mundo.
Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE