Marília Murta de Almeida
Acostumamo-nos a pensar que existem tipos diferentes de amor. Amor eros, amor ágape, amor philia, para ficarmos com as distinções gregas tão caras também ao mundo cristão. Não sei se por dificuldade com distinções ou se por apreço ao universo psíquico humano que tem por hábito juntar e misturar, nunca entendi bem essas diferenças. Clarice Lispector também parece não as aceitar, quando escreve na crônica “Mineirinho” que a coisa que faz Mineirinho “gostar ‘feito doido’ de uma mulher” é a mesma que faz com que ela “dê água a outro homem”; tal coisa é em nós “tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador – em amor pisado”.
Temos então em nós, segundo a Clarice de “Mineirinho”, uma potência de amor que pode se transformar em violência se for maltratada. Mas sendo amor, é uma coisa só que nos põe em ação de desejar ou de doar. Dar água a quem tem sede ou desejar feito doida um outro corpo seriam atos gerados pelo mesmo grão de radium. Os modos e caminhos diversos que o amor pode encontrar em cada vida humana não fazem com que possamos falar em formas distintas do amor; todas são veredas do mesmo amor.
A vontade de distinguir o amor em algumas formas bem delineadas parece dizer de nossa necessidade de organizar o que é movimento e transmutação, desde sempre. Talvez porque o ato de desejar nos faz mostrar a fragilidade que nos configura, nós que não bastamos a nós mesmos. Talvez porque o impulso para doar pode nos colocar em risco, na medida em que nos distrai da necessidade de nos preservarmos. Talvez ainda porque o ato de amar pode revelar que o amor não tem origem em nós mesmos, pelo menos não no que reconhecemos facilmente como nós mesmos.
Com a poeta Adélia Prado, experimentamos o que se costuma chamar de amor do espírito também de modo indissociável de outras formas do amor. Leiamos um trecho do poema “O sacrifício” em que percebemos esse movimento:
Eu suspiro por ele.
Casar, ter filhos,
foi tudo só um disfarce, recreio,
um modo humano de me dar repouso.
(…)
Quero ver Jonathan
(…)
Desde a juventude desejo e desejo
a presença que para sempre me cale.
As outras meninas bailavam,
eu estacava querendo
e só de querer vivi.
Licor de romãs,
sangue invisível pulsando na presença Santíssima.
Eu canto muito alto:
Jonathan é Jesus.
A potência de amor que deixa a poeta em estado de desejo, de querer e querer ver Jonathan, que é Jesus, é o que a move a se casar e ter filhos, meios humanos de acalmar o desejo infinito que a perturba. O que em nós deseja nos lança para a vida. O sonho de ver Jonathan a movimenta na vida, que é humana e que se faz pelos gestos simples que são possíveis a nós.
O grão de radium de Clarice Lispector se parece com o querer de Adélia Prado. É força que pulsa no corpo e que gera em nós o desejo pela vida. Força que se desdobra nas variações infinitas do amor. Variações que se movimentam livremente e que não obedecem às distinções pretendidas pelos estudiosos. Amor que deseja um outro corpo, amor que se doa, amor que quer conhecer e saber, amor que quer ver e sentir Deus, amor que quer viver. Amor que, doando-se a um outro corpo, percebe-se criatura do Deus que ama, juntando num só ato as formas distintas nas quais o dissecaram.
Segundo nos diz o ensinamento cristão, Deus nos amou primeiro, somos fruto do seu amor. Amando-nos, Deus nos vê, como também escreve Adélia no poema “Presença”: “O olho de Deus me vê, / o olho amoroso dele”.
Parece ser, pois, esse olhar amoroso de Deus que nos afogueia em amor que é desejo e anseio pelo mundo e pelo outro. Deus, assim, nos erotiza com o seu Amor. E assim percebido, esse Deus é o gerador do amor que em nós se fragmenta e toma para si as mais diversas faces; amor que vive em permanente transmutação em nós, gerando novas e novas formas, mas que é também capaz de sofrer a mutação para o seu oposto, gerando violência e morte, como lemos em “Mineirinho”, e que por isso nos assusta e nos faz pretender enquadrá-lo.
Enquadrado nas distinções que o protegem dos movimentos bruscos, o amor não se parece em nada com o que sentimos na carne. Na experiência vivida no corpo, o amor arde em nós e nos põe a dançar e cantar. No mesmo canto/dança chamamos por Deus e pela pessoa amada, nos doamos em desejo e em compaixão, percebemos a beleza do mundo e a dor do irmão, sentimo-nos vivos e atravessados pela morte. Vivemos.
Marília Murta de Almeida é professora no departamento de Filosofia da FAJE