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“Não tomar o nome de Jesus em vão”

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Jaldemir Vitório, SJ

A tradição bíblica é severa quando se trata de usar, de maneira leviana, o nome de Deus. No Antigo Testamento, o segundo mandamento do Decálogo ocorre em duas ocasiões, formulado assim: “não pronunciarás em vão o nome do Senhor teu Deus, porque o Senhor não deixará impune aquele que pronunciar em vão o seu nome” (Ex 20,7; Dt 5,11). Como acontece a transgressão dessa ordem?

Existem maneiras ingênuas de transgredi-la, por exemplo, quando se aplica a certos estabelecimentos nomes que a Bíblia atribui a Deus, chamando-os de “El Shaddai Distribuidora”, “Brechó Jeová Jiré”, “Adonay confecções”, nomes encontrados numa rápida busca na internet. Também, quando se ousa dizer: “juro por Deus!”, “Deus vai te castigar” ou “você sentirá o peso da mão de Deus” e outras expressões. Por vivermos numa sociedade onde a “fé” está presente, com frequência ouvimos: “Deus te abençoe!”; “vá com Deus!” “durma com Deus!”; “foi um Deus nos acuda!”. Pessoas simples, em face da injustiça sofrida, são capazes de dizer: “Deus quis assim”; “foi a vontade de Deus”. O nome de Deus se faz tão presente em nosso linguajar cotidiano a ponto de não nos perguntarmos: “estou usando corretamente o nome de Deus ou o estou usando em vão?”.

O foco do mandamento bíblico não se concentra nesse nível de evocação do nome divino. E sim, tem em vista aquelas pessoas que acobertam suas falcatruas e maldades com o nome de Deus. Só pessoas, aparentemente, religiosas profanam o nome de Deus, quando o transformam em pretexto para explorar a boa-fé das pessoas e cometer as mais atrozes injustiças ou quando não se dão conta de que o culto e a oração devem ser acompanhados de compaixão e misericórdia no trato com os semelhantes.

Os profetas da Bíblia foram muito sensíveis às formas equivocadas de se voltar para Deus. Vale a pena ler Isaías 1,10-20. Ao denunciar o culto praticado no Templo de Jerusalém, o profeta põe na boca de Deus palavras duras, dirigidas à elite religiosa da Cidade Santa: “quando estendeis as vossas mãos, desvio de vós os meus olhos; ainda que multipliqueis a oração não vos ouvirei” (v. 15). O profeta Miqueias, falando aos opressores do povo, afirma que Deus “lhes esconderá a sua face naquele tempo, porque os seus atos foram maus” (Mq 3,4). O profeta Jeremias revela como Deus tratará os falsos religiosos e sua falsa segurança: “se eles jejuarem, eu não escutarei sua súplica; se oferecerem holocaustos e oblações, eu não terei complacência com eles” (Jr 14,12). Aqui não se fala em tomar o nome de Deus em vão. No entanto, Deus trata assim seus adoradores por não se darem conta da urgência de conectar culto e vida, adoração a Deus e cuidado com o próximo. Em outras palavras, a invocação do nome de Deus se limita ao espaço sagrado, sem qualquer desdobramento prático na linha da compaixão misericordiosa. Toma o nome de Deus em vão quem passa do culto à prática da injustiça, da oração à maldade cometida contra o próximo, do louvor a Deus ao desrespeito à dignidade do semelhante. Pior ainda, quem fala de Deus com o intuito de enganar e explorar o semelhante. Quem age dessa forma vai na contramão do mandamento divino.

A Lei veterotestamentária vale também para o Novo Testamento. Pode ser parafraseada assim: “não pronunciarás em vão o nome de Jesus!” São muitos os usos abusivos do nome de Jesus! Convido os leitores e as leitoras a prestarem atenção no modo como o nome de Jesus e seus símbolos aparecem em suas palavras e nas alheias, seu uso nas igrejas, nos meios de comunicação, nas peças de vestuário, em bijuterias e em joias valiosas, em adesivos de carros e em tantas outras circunstâncias. Tentem verificar como o nome de Jesus, com muita frequência, serve para acobertar maracutais religiosas e políticas ou ideologias perversas em detrimento do povo.

Lideranças religiosas “cristãs” autoritárias e pouco afinadas com o evangelho usam e abusam do nome de Jesus para impor suas ideias mesquinhas. Certa vez, no final da distribuição da comunhão em uma missa dominical da qual eu participava no meio do povo, tive o desprazer de ouvir o presidente da celebração dizer: “Jesus não gosta de mulheres que usam roupas com alcinhas”. Fiquei pasmo! Ele havia anunciado que não se aproximasse da comunhão mulheres que não estivessem com roupa de mangas. Perguntei-me: como ele está tão seguro desse “gosto” de Jesus? Donde lhe vem tamanha certeza? Existem padres que têm o atrevimento de dizer: “Jesus não gosta de gays!”; “Jesus não gosta de casais de segunda união!”; “Jesus não gosta de comunista!”. Cada leitor e leitora poderá acrescentar outras “pérolas” que já ouviu. Na verdade, esses falsos cristãos atrelam Jesus à sua visão estreita de mundo e da realidade, sem se darem conta de estar usando o nome do Senhor em vão.

O nome de Jesus tem sido tomado de maneira imprópria de muitas outras maneiras. Pensemos em certos eventos de massa, que trazem o nome de Jesus, dos quais Jesus tomaria distância, por estarem muito longe do ideal evangélico de Igreja e de sociedade. Pensemos em certas missas católicas com pregações inflamadas de líderes moralistas implacáveis que recorrem ao nome de Jesus para apartar e discriminar pessoas. Pensemos nos influencers que se dizem cristãos, embora se sirvam dos meios digitais para propagar intolerância, deixando de lado a preocupação de se perguntar se Jesus daria o aval àquilo que lhe é atribuído. Pensemos em certos movimentos e grupos de nossa Igreja que, em meio a ricos paramentos e incenso e falando em nome de Jesus, dão guarida a personalidades pervertidas e inescrupulosas. Pensemos em quem carrega uma baita cruz no pescoço, no entanto, tem o coração muito distante do Mestre de Nazaré. Pensemos nos que abrem novas igrejas e lhes dão nomes alusivos a Jesus ou a algo tirado da Bíblia, para depois arrancarem dos fiéis até o último centavo, sem dó nem piedade. Imagino Jesus dizendo-lhes: “ô gente, respeito é bom e eu gosto!”

Detenho-me numa forma de vilipendiar o nome de Jesus, reduzido à logomarca gospel. Sem qualquer pudor, fala-se em “música gospel”, “festival gospel”, “cantor gospel”, “igreja gospel”, “casal gospel”, “filme gospel”, “moda gospel” etc. etc. Aqui, a palavra inglesa gospel, evangelho em português, dificilmente, leva a evocar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Antes, aponta para um tipo de religião água com açúcar, para cantorias de autoajuda ou aleatórias, para ambientes de louvação alienada e alienante, para um tipo de fé light em busca de emoções religiosas. Por outro lado, o mercado gospel tem se mostrado altamente lucrativo, movimentando somas astronômicas de dinheiro. Jesus foi transformado, por seus (falsos?) fiéis, em objeto de compra e venda e de lucro. Foi sacrificado ao deus dinheiro! Quem levanta a suspeita de estar tomando o nome de Jesus em vão, quando usa a palavra gospel, a torto e a direito? Quem se pergunta se Jesus de Nazaré aprovaria a moda gospel? Se gostaria das músicas onde aparece seu nome, na voz de cantores e cantoras gospel? Se estaria à vontade em eventos gospel barulhentos, com falações sem fim, onde foi transformado em show? Em suma, se concordaria em se ver reduzido a uma rentável logomarca?

São incontáveis as formas de tomar o nome de Jesus em vão. Como já estamos anestesiados, não nos damos ao trabalho de nos perguntar se Jesus estaria ou não de acordo com o que lhe é atribuído. Para muitos, a simples evocação do nome de Jesus vale por si mesma, dispensando a necessidade de ser questionada com a medida oferecida pelos Evangelhos. Nas catequeses evangélicas, nós, discípulos e discípulas do Mestre de Nazaré, encontramos nossa de pauta de ação e os critérios para avaliar a maneira como seu nome é usado em nosso cotidiano e na sociedade.

Vemo-nos na obrigação de respeitar e fazer respeitar o nome do nosso Mestre e Senhor. Torna-se urgente sermos vigilantes e enfrentarmos certo tipo de “cristianismo” que, fazendo grandiosas evocações do nome de Jesus, está a serviço da injustiça que vitima seus preferidos.

Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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