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O Magistério da Igreja em tempos de redes sociais

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Pe. Manoel Godoy

A Igreja Católica, como organismo que agrega os fiéis que seguem Jesus Cristo e pautam suas vidas pela Palavra de Deus, está no mundo e atua como qualquer outra entidade civil. Para dentro, tem os seus princípios e ideais; para fora, busca influenciar a vida social do país, com sua visão humanista e cristã, pautada por seu ideário e utopias.

Para cumprir sua missão, a Instituição conserva uma estrutura historicamente montada, com uma hierarquia bem definida. Cabe a essa hierarquia centrada no Papa com uma Cúria com sede em Roma, com seus organismos, determinar o cuidado com seu corpo doutrinal. Essa missão é denominada Magistério da Igreja.

Magistério, nesse caso, refere-se à função de ensinar, própria da autoridade eclesiástica, que, por isso, deve ser obedecido e seguido pelos católicos. Cabe ao papa e aos bispos, em união com ele, explicitar o conteúdo das orientações necessárias para a catolicidade, no seu esforço de ser fiel ao seguimento de Jesus.

A missão do Magistério, ainda, deve ser a de proteger o povo dos desvios e dos afrouxamentos, em termos doutrinais, e garantir-lhe a possibilidade objetiva de professar sem erro a fé autêntica. O ofício pastoral do Magistério está, assim, ordenado ao cuidado para que o Povo de Deus permaneça na verdade que liberta (cf. CIC 888-892).

Em tempos idos, se entendeu que as decisões Roma, não se discutem, se acatam. Criou-se até um axioma para expressar bem essa situação – Roma locuta, causa finita est. Isto significa literalmente em português: Roma falou, o caso está encerrado. Hoje, porém, são tantas vozes, sobretudo nas redes sociais, que o axioma ganhou nova formulação: Roma locuta, disputata causa est. Sobretudo, quando o Magistério em questão fala o que não combina com a ideologia deste ou daquele grupo. Basta lembrarmos dos embates em torno da Humanae Vitae, de Paulo VI (1968). Hoje, inúmeros escritos do Papa Francisco são, não somente contestados, como praticamente ignorados por muitos segmentos eclesiais. Para exemplificar, tomemos a sua Exortação Apostólica Amoris Laetitia. Porém, percebe-se uma indiferença surda sobre outros documentos como Evangelii Gaudium, Laudato Si, Tutti Fratelli. Tais documentos, foram, rapidamente, engavetados ou colocados como enfeite de biblioteca.

Por empenho do Papa Francisco, estamos vivendo um tempo sinodal na Igreja, onde todas as pessoas de boa vontade, não somente os cristãos, são convidados a repensar a caminhada eclesial, para que os processos sejam mais participativos, mais envolventes e inclusivos. Processo esse praticamente esquecido pelos meios de comunicação e pelos influenciadores digitais católicos.

E, em tempos de redes sociais, constatamos certa pulverização do Magistério, chegando mesmo a beirar um relativismo perigoso, onde o mundo dos influenciadores digitais, inúmeras vezes, se sobrepõe às orientações da hierarquia católica.

Podemos dar como exemplo o campo vasto de seguidores dos influenciadores digitais, que atropelam, e muito, os órgãos oficiais da Igreja Católica. Comparemos os seguintes números: Padre Fábio de Melo tem 26 milhões de seguidores; Marcelo Rossi, 8 milhões; Frei Gilson, 3,2 milhões; Irmã Kelly Patrícia, 2 milhões; Paulo Ricardo, 1,7 milhões; Vatican News, 853 mil; CNBB, 189 mil. Um Arcebispo como Dom Walmor, que já exerceu o mandato de Presidente da CNBB, tem 23,6 mil seguidores. Esses são os números de influenciadores católicos no Instagram, constatados com o acesso em 21 de setembro de 2023.

O que poderia ser celebrado como um excelente ganho para a Instituição com números tão significativos de presença nas redes, é, na verdade, motivo de preocupação, pois, o conteúdo veiculado, sobretudo pelos mais significativos influenciadores católicos digitais, praticamente ignora qualquer orientação que venha do Papa Francisco e da sua proposta de sinodalidade. Se não se constitui em Magistério contra, pode-se afirmar que seja um Magistério paralelo. Está nascendo, assim, uma outra Igreja, povoada por católicos que desconhecem os ensinamentos do Concílio Vaticano II e seus desdobramentos eclesiais. Uma Igreja que retrocede às orientações do século XVI, emanadas do Concílio de Trento.

Muito já se falou que se vive, no interior da Igreja, um real cisma silencioso, onde as orientações do Magistério são literalmente ignoradas por uma parcela significativa do povo católico. Realidade que se pode questionar por diversos ângulos. Do ponto de vista do Magistério, pode ser que suas orientações não acompanhem a evolução do mundo contemporâneo, sobretudo em questões de moral sexual e dos costumes; do ponto de vista do povo católico, será que a pulverização das orientações lhe provoque uma imensa confusão entre o certo e o errado? Diante dessa imensa confusão de ideias, a busca pelo passado seria um querer atracar o barco da vida onde, um dia, já se alcançou mais segurança?

Piero Cappelli, escritor italiano, analisa em sua obra, Cisma Silencioso, as contradições e os conflitos, muitas vezes duros e profundos, dentro da Igreja católica, entre a hierarquia e o variegado povo católico, fiéis, sacerdotes e religiosos, que, na prática e no pensamento, têm posições diferentes e contrastantes em relação à doutrina oficial. Trata-se de um autêntico cisma, embora silencioso, não declarado, porque falta no interior da Igreja espaço à sadia controvérsia e ao diálogo. Os dissidentes, sobretudo teólogos e presbíteros mais avançados, muitos deles adeptos de uma teologia mais arejada, por longo tempo, pagaram com a marginalização e a exclusão institucional. Por outro lado, sempre houve mais tolerância com os dissidentes conservadores e tradicionais. Isso criou no interior da Igreja um mal-estar profundo, difícil de ser superado. Em tempos de redes sociais, esse fosso ficou ainda mais evidente e se aprofundou, pois, por meio dos principais influenciadores digitais, difundem-se conteúdos até contrários às orientações oficiais da Igreja. No entanto, não recebem qualquer contestação da Instituição; por outro lado, até bem pouco tempo, o outrora Santo Ofício filtrava com lupa as tentativas de avanço propugnadas por teologias mais contemporâneas e ousadas.

Em face de tudo isso, faz-se necessária uma séria revisão do papel do Magistério confrontado e, às vezes, contradito pelas redes sociais; sem isso, corre-se o risco de aprofundarmos, cada vez mais, o cisma silencioso na Igreja, que já nem é tão silencioso assim.

 

Pe. Manoel Godoy é professor e supervisor de Estágio Pastoral  no departamento de Teologia da FAJE

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