Carlos Roberto Drawin
Numa época de conturbada transição histórica o grande poeta latino Virgílio registrou num verso a rapidez com que as coisas surgem e perecem: “o tempo foge, irreversivelmente o tempo foge”. A expressão por ele usada e amplamente difundida, acabou sendo incorporada à linguagem comum: “o tempo voa” (tempus fugit), dizemos frequentemente. Nem por isso o poeta se entregou ao cômodo conformismo ou à exaltação dos gozos momentâneos, como se a vida carente de sentido, de nada valendo, apenas valesse pelos prazeres fugidios, aqui e ali colhidos. Ao contrário, consciente dos enormes desafios a serem enfrentados por sua pátria ele cantou, numa célebre epopeia, “Eneida”, os ingentes esforços feitos por Enéias nas muitas peripécias envolvidas na fundação do povo romano: “tão grave era plantar de Roma a gente!”.
Apesar da fluidez da vida humana, o sentido da existência era então reafirmado, pois, para além das fragilidades dos indivíduos e das contingências da época, o olhar do poeta voltava-se para o passado com a intenção de forjar o futuro. “O tempo devorador das coisas”, reiterava outro verso, este de Ovídio, também poeta latino, ao narrar as transformações do mundo. A arte sempre expressou a inquietação humana diante do enigma do tempo e, no ato mesmo de fazê-lo, sinalizava como enfrenta-lo. Cronos somente pode ser contido em sua voragem se soubermos captar nas vivências mais comuns e fugazes o reluzir da transcendência, daquele “para além das fragilidades e contingências”.
Mas é possível essa captação da transcendência? O verbo “captar”, certamente, não é muito adequado, uma vez que significa “obter”, “conquistar”, “apoderar-se de algo”, como se fosse possível ter posse daquilo que necessariamente nos escapa e justamente ao nos escapar nos ampara em nossa fraqueza e nos consola em nossa tristeza.
Não é fácil assentar o sentido da existência na busca da transcendência, porque esta não pode ser capturada nas malhas de nossos quereres e planejamento, mas supõe um certo esvaziamento de si. Virgílio, o poeta pagão, já convidava para a ampliação do olhar do indivíduo para a construção de uma comunidade que o ultrapassa. Alguns séculos depois, quando o cristianismo já se difundia pela Antiguidade Tardia, Santo Agostinho reiterava um convite semelhante, porém, para ele, a ampliação do olhar se convertia no voltar-se para nossa interioridade mais íntima. Conversão à interioridade não para nos absorvermos inteiramente em nossas decepções e dissabores ou em nossas vaidades e pequenos êxitos. Se ficarmos agarrados aos impasses de nossa individualidade, se não nos despojarmos de nós mesmos – ensinava um grande místico medieval – não nos libertamos para o mergulho no vazio abissal de nossa mente, não nos arriscamos nesse fundo sem fundo onde Deus habita. Mas isso, poderíamos indagar, implicaria em abandonarmos o mundo de nossas famílias e afetos, de nossos trabalhos e responsabilidades? Isso implicaria em nos retirarmos do afadigar-se do dia a dia, em não nos comprometermos com a luta comum? Ou, ainda, em não mais acolhermos os sabores do corpo, as belezas propiciadas pelas artes, as alegrias do coração?
O despojamento de si mesmo não pode ser simplesmente confundido com a renúncia ascética, dura e ressequida, de nossa condição carnal. O amor humano não pode prescindir de nossa tão humana sensibilidade: das mãos que se tocam, do calor das festas, da comunicação dos gestos, da solidariedade nos sofreres e da comunhão dos encontros. Não é esse o ensinamento profundo do Absoluto que se fez carne?
O filósofo coreano, radicado na Alemanha, Biung-Chul Han, é autor muito traduzido e publicado no Brasil. Os seus livros, geralmente curtos em extensão e preciosos por sua acuidade reflexiva, atestam a necessidade dos filósofos e estudiosos em geral não se restringirem aos seus gabinetes e bibliotecas, não recusarem sair às ruas e conversarem com as gentes. Num dos seus livrinhos, cujo diminuitivo não contém qualquer desapreço, ele narra um episódio curioso. Quando belíssimo oratório “A paixão segundo São Mateus” de Johann Sebastian Bach foi pela primeira vez apresentado, em 1727, muitos dos mais ardorosos fiéis se escandalizaram. Para eles, aquela música ao tocar a sensibilidade dos fiéis os distraia da liturgia da missa e seria mais apropriada aos teatros do que às igrejas. Para alguns, a melodia dos instrumentos e cantares era incompatível com o recolhimento da oração. Hoje essa atitude nos espanta. Mas, talvez, não devesse nos espantar! Por quê? Porque aquela rigidez, aparentemente ultrapassada, exemplificava uma tentação muitíssimo atual: o desejo do controle absoluto sobre nossa condição encarnada.
Afinal de contas, o empenho em silenciar a música e calar a sensibilidade não traduzia a pretensão de completo domínio da alma sobre o corpo? O nosso espanto provém das mudanças sociais cada vez mais rápidas em direção de uma sociedade secularizada, na qual o o espaço do sagrado se contraiu muito e não mais suscita o temor e a reverência do passado. O sagrado era a irrupção de uma realidade outra, independente de nossa vontade e que não podíamos dominar. Por isso, como ocorreu com o episódio acima relatado sobre a música de Bach, alguns julgavam necessário o total controle do corpo e da sensibilidade para poder adentrar no espaço da sacralidade.
Nos libertamos desses antigos grilhões? De modo algum! Num mundo dessacralizado o controle torna-se absoluto porque todo destino está em nossas mãos e o objetivo passa a ser a administração total da vida individual e social. Ao se tornarem o discurso predominante nas sociedades modernas e ocuparem o lugar de autoridade suprema, antes ocupado pela religião, a ciência e a técnica passam a regular todos os aspectos da existência: o que comer, beber e fazer para gozarmos de boa saúde, como devemos nos comportar para obtermos sucesso profissional e pessoal, o modo correto de educarmos os filhos e as estratégias para preservarmos uma imagem feliz, positiva e exitosa. Como bem observou Michel Foucault a saúde física e emocional substituiu o antigo ideal da salvação da alma. A pretensão secularizada de tudo controlar é muito mais ambiciosa e impositiva do que a antiga regulação destinada à salvação da alma. Esta, em última instância, dependia a misericórdia divina, agora tudo depende inteiramente de nós. Se ficamos doentes somos culpados por não termos seguido adequadamente as prescrições dos profissionais de saúde, se os nossos filhos seguem caminhos inesperados e decepcionantes, somos responsáveis por não termos sabido dosar com perfeito equilíbrio o amor e a disciplina, se perdemos o emprego ou ficamos aquém de nossas expectativas financeiras e institucionais é porque, certamente, fomos inoperantes, insuficientes em nossos fazeres. O antigo “mea culpa”, apesar de seus excessos de severidade, sempre poderia apelar para a misericórdia do Deus que tudo põe e dispõe. A atual culpabilização generalizada é sem apelação e vem acompanhada da crença ilusória de que somos senhores de nossas vidas e podemos moldá-las como quisermos e bem entendermos.
Se assim é e se somos continuamente bombardeados com as mensagens de felicidade, controle e sucesso, então tudo depende de nossas forças. Contudo, de repente, chega um visitante inesperado: uma doença, um fracasso amoroso, alguma hostilidade inexplicável ou, simplesmente, somos arrastados pela pandemia, a violência ou a crise econômica. Tudo isso poderia ser resumido naqueles versos dos poetas latinos: o tempo voa, devora todas as coisas e destitui nossos sonhos. A plenitude depositada em nós mesmos acabou se revelando ilusória e vã. Abre-se, então, as alternativas do desespero e da revolta ou o reconhecimento de que em nosso vazio não reina apenas a escuridão, nele brilha a esperança de redescobrir a insuspeitada riqueza que se esconde em nossa irremediável pobreza.
Carlos Roberto Drawin é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE