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A santidade ao pé da porta

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Geraldo Luiz De Mori, SJ

“Sede santos, porque eu, o Senhor, sou Santo” (Lv 11,44)

Quarta-feira de Cinzas. Após a missa, uma senhora se aproxima e pergunta: “padre, posso falar com o senhor?”. Essa pergunta, em geral, está associada a um pedido de confissão. Por isso, logo respondi: “sim, aguarde um pouco que já podemos falar”. Na sacristia ela então me disse: “não, padre, não é confissão, é só uma conversa rápida”. E logo em seguida me disse: “eu queria dar um testemunho”. Eu disse: “pode falar”. E ela disse: “sou enfermeira, trabalho na UTI de pessoas transplantadas. Uma jovem, de 26 anos, precisava de um transplante de coração. Infelizmente para a pessoa que morreu, mas para esta senhora, que estava na fila de espera de um órgão, foi uma graça. Ela recebeu um coração novo e, graças a Deus, a cirurgia do transplante foi um sucesso. Estou jejuando por ela, para que possa se restabelecer completamente e seguir a vida”.

Um testemunho “anônimo” de uma pessoa provavelmente “anônima” para a grande mídia, para os “grandes” do mundo e para muita gente a quem valorizamos nos ambientes eclesiais, mas que naquele momento me provocou uma espécie de “arrepio reverencial”, pois encontrava-me diante de uma expressão autêntica do que o Papa Francisco, na Gaudete et exsultate, exortação sobre o chamado à santidade no mundo atual, chama de “santos ao pé da porta”, ou seja, santos anônimos, mas que, com sua vida e testemunho escondido, fazem a diferença, vão derramando o “óleo que cura” sobre as feridas de tantos homens e mulheres. E o mais significativo era que, além de, por profissão, ter que cuidar dos enfermos em situações tão drásticas, aquela senhora associou o ato de “jejuar”, com o qual se começa o tempo da quaresma, à oração que fazia por aquela paciente, ou seja, não bastava o que já fazia profissionalmente, que é o lugar por excelência da vivência da santidade da maioria das pessoas, mas acrescentava a confiança de que “tudo é graça”, como dizia a santa da “via curta”: Terezinha do Menino Jesus. E o testemunho que queria dar não demandava microfone ou holofote, mas simplesmente uma quase “confissão” na bondade e providência do Deus que cura.

Trazer para o espaço público um testemunho do que foi dito no espaço privado de uma “quase confissão”, não é atentado ao “segredo” ao qual os ministros ordenados estão obrigados no sacramento da confissão, mas uma espécie de fazer ecoar o que deveria ser “proclamado nos telhados”, como diz Jesus no discurso aos discípulos enviados em missão. O velho ditado popular diz que as “palavras o vento leva, mas os exemplos arrastam”. É importante, portanto, “proclamar nos telhados”, ou seja, no espaço público, o que aquela senhora testemunhou, para que seu testemunho possa “arrastar” outras pessoas, mostrando que é essa “fé elementar”, como a de tantas pessoas que se aproximavam de Jesus, crendo que ele poderia curá-las ou realizar algum sinal de poder sobre ou para elas, fé diante da qual o próprio Jesus “exultava”, dando graças ao Pai por ter “escondido essas coisas aos sábios e entendidos e tê-las revelado aos pequeninos” (Mt 11,25). Ao reconhecer nos “pequeninos” a revelação do “mistério do reino”, Jesus é, sem dúvida, o primeiro a indicar que a santidade se dá ao pé da porta.

Que sentido tem trazer esse “testemunho anônimo” numa semana tão marcada por acontecimentos mais relevantes do ponto de vista político, como o que, nas últimas semanas, tem estarrecido o Brasil com as revelações da Polícia Federal sobre a trama, por parte do então Presidente Bolsonaro, de um golpe de estado no Brasil, ou diante dos debates acalorados sobre o discurso do Presidente Lula na 37ª Reunião da Cúpula das Nações Africanas na Etiópia, associando a guerra de Israel contra o Hamas à situação à qual foi submetida o povo judeu na Alemanha Nazista? Quem não é capaz de enxergar a beleza de um gesto tão sincero e simples, como o do jejum da enfermeira pela paciente da qual cuidava, tampouco é capaz de descobrir no cotidiano o agir misterioso de Deus, que faz a diferença, pois introduz no mundo esperança, e a “esperança não decepciona” (Rm 5,5), mas faz girar a “roda da história”, nos grandes e nos pequenos acontecimentos.

Todo gesto que faz o “reino de Deus se aproximar”, como diz Jesus ao inaugurar seu ministério, segundo o Evangelho de Marcos (Mc 1,15), é capaz de fazer irromper esperança. Certamente a mulher que recebeu o coração esperou com todas as suas forças que pudesse haver um doador compatível. Todo o pessoal médico, seguindo todos os protocolos, também esperavam que, graças à sua dedicação, poderiam assegurar uma vida mais digna àquela paciente. Mas essa esperança que é constitutiva do ser humano pode ser lida também como uma “virtude teologal”, ou seja, como uma graça divina derramada nos corações dos que são capazes de enxergar o agir divino em tudo. Foi esse o salto dado pela “santa ao pé da porta” que jejuou na intenção do sucesso da cirurgia da paciente da qual cuidava. É a esse tipo de olhar que a Igreja chama cada ano os fiéis no tempo da quaresma. Muita gente pensa que o chamado à conversão, tão acentuado nesse tempo, é o mais importante, devendo culminar numa confissão e na absolvição. Esse itinerário é, sem dúvida, importante, mas ele só mostra sua eficácia se for capaz de mudar o olhar e o agir de quem o faz, ou seja, se “transfigurá-lo”, tornando-o capaz de, como Jesus, descobrir beleza, bondade e verdade mesmo no meio do caos e do terror.

De fato, o caminho da quaresma culmina numa das maiores abominações, a morte injusta e perversa, na cruz, de um inocente, o mais inocente dos seres humanos. Como descobrir, em meio a esse caos e a esse terror, a presença divina? O próprio Jesus aponta o caminho, retomado, de modo tão bonito na tradição da meditação das sete palavras, feita na sexta-feira da paixão. Nelas se pode ler uma sede por detrás da sede; um perdão “difícil” aos inimigos; a entrega, à comunidade, daquela que o gerou e lhe fez descobrir o caminho da vida e da fé; o sentimento do mais profundo abandono e solidão; a promessa de um paraíso a quem faz o caminho a reconciliação e do perdão; a certeza de ter cumprido a missão; o salto da fé diante da obscuridade que é a morte humana.

A tragédia humana, expressa em tantas situações, como a da mulher que sofreu e esperou o coração que lhe deu nova chance de vida, à dos milhares de palestinos que padecem uma guerra injusta, ou a dos efeitos perversos de sistemas que oprimem e criam “descarte” e “descartados”, pode ser vista apenas como tragédia, provocando compaixão, indignação, gestos concretos de solidariedade, revolta. O que o caminho quaresmal deveria despertar em quem acredita que Deus disse sua palavra última e definitiva no alto da Cruz do Filho, é o que convida a passar por todas as adversidades da vida sabendo-se amado, cuidado. Os santos ao pé da porta, como a enfermeira da Quarta-Feira de Cinzas, foram educados, pela fé, a descobrirem essa presença divina, muitas vezes discreta, quase imperceptível, em tudo e a reconhecerem que Ele estava lá. O jejum, que priva de alimento, deve provocar a fome dessa descoberta de um Deus que nunca abandona seus filhos e filhas, mas está sempre lá, muitas vezes padecendo com eles, mas desejoso de que descubram que ele não os abandona nunca, pois é Pai.

Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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