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A folha e o vento

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Marília Murta de Almeida

O teólogo Karl-Josef Kuschel, em seu livro Os escritores e as escrituras, ao propor a teopoética como uma via para se falar de Deus na contemporaneidade, sugere, a partir de uma citação do poeta e teólogo Kurt Marti, que talvez Deus mesmo tenha deixado poetas à sua disposição porque seriam aptos a falar d’Ele sem reduzi-Lo a qualquer tipo de definição. Ou seja, o modo poético de falar seria aquele que se resguarda da pretensão de abarcar o que escapa sempre.

Entretanto, como o desejo humano de dominar o que quer compreender não tem fim, há sempre o risco de definir e abarcar a própria poesia, contrariando o alerta do poeta brincante Mário Quintana, em seu Caderno H: “A poesia não se entrega a quem a define”.

A poesia, como Deus, é livre e só se entrega ao poeta que não a aprisiona. Deus, como a poesia, é livre e nos chama à entrega.

Deus é livre e é a Sua liberdade que pode nos guiar.

O que pode significar para nós, seres humanos sempre sedentos de orientação e certeza, a ideia de sermos guiados por um Ser livre? Certamente algum nível de instabilidade e a consequente angústia. O Ser que é livre tem o poder de nos surpreender sempre. O Deus livre nos quer também livres e por isso nos liberta. O Deus livre é libertador porque a Vida que Ele sonhou para nós – a Vida em abundância! – é a Vida na liberdade, como a d’Ele.

Mas a vida na liberdade requer de nós suportar um bocado de incerteza. É preciso que aceitemos não saber e não conhecer com exatidão o mundo que nos cerca, o Deus que nos guia e mesmo a nós mesmos – nós, que nascemos com um aparato cerebral pronto para conhecer! E aqui vale a pena lembrar uma famosa passagem de Clarice Lispector: “Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras”.

Só nos entregando ao não entendimento temos a chance de penetrar no espaço do que não tem fronteiras. Só não sabendo posso plenamente descansar e me deixar guiar por Aquele que me guiará por onde a Sua vontade escolher passar. E na incerteza não conseguimos entender plenamente a força do Deus criador que fez nascer o mundo porque esse foi o seu desejo. E seguimos nos surpreendendo com as ações de Jesus que tantas vezes parecem revirar ao avesso aquilo que seria esperado pela consciência de sua época, mas também da nossa época. E menos ainda podemos alcançar o movimento do Espírito que sopra onde quer.

No Livro do Eclesiastes, o autor bíblico nos faz ouvir que buscamos saber e conhecer e que isso é “perseguir vento” (Ecl 1,16-17). É correr atrás do vento e tentar prendê-lo, mas “o vento vai para o sul e vai para o norte, / gira, gira e vai embora, / sempre retoma o seu curso, o vento” (Ecl 1,6).

O sopro livre do vento que levanta consigo folhas, flores e o que mais puder nos remete imaginariamente ao fluxo da liberdade. Mas imaginarmo-nos como a folha que é levada pelo vento pode gerar intensa angústia. Sem pretender desconsiderar a importância do chão firme para que sejamos capazes de atravessar a vida com o mínimo de estabilidade necessária a nosso corpo e nossa alma, proponho que nos deixemos levar pela imagem da folha ao vento.

Há, em algum lugar de nossa interioridade, um ponto qualquer que é como a folha que é levada pelo vento. Esse ponto não pede pouso, não pede conclusões, não pede certeza alguma, pede apenas para nos entregarmos ao Ser livre que nos guia.

Talvez nosso ponto-folha esteja tão escondido que não consigamos percebê-lo. Mas ele há de existir em cada um de nós. Ele é o ponto capaz de se entregar e que nos convoca para a entrega. O ponto capaz de Deus, para usar uma expressão cara à teologia.

Ele é o ponto em nós que diz sim e se deixa guiar, como a mulher que aceitou gerar o Deus-Menino e enveredou por um caminho desconhecido, entregue à Palavra que a chamou. E assim o sentido mesmo da palavra liberdade se deixa levar pelo movimento da folha entregue ao vento. Se liberdade soa às vezes como poder de escolha e decisão, potência humana de autodeterminação, a liberdade que nos oferece o Deus livre é de outro tipo. É a liberdade de nos deixarmos guiar pela Sua liberdade. Não porque cremos que Ele sabe o que faz. Mas porque amamos a Sua liberdade.

Nessa entrega, a relação que podemos ter com Deus apresenta sua outra face. A face desta relação que normalmente conhecemos é aquela que nos diz da companhia do Deus que está conosco onde estivermos. A outra, quase oculta, nos chama a estar com Ele, ao modo d’Ele, como a folha carregada pelo vento.

Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora nos departamentos de Filosofia e Teologia da FAJE

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