Pe. Jaldemir Vitório, SJ
Estamos na Oitava da Páscoa e, com certeza, a beleza das celebrações da Vigília Pascal ainda está em nossas mentes. As pessoas com quem encontrei nesses dias foram unânimes em falar da riqueza da liturgia e da participação das comunidades nesse que é o momento auge de nossa fé, quando fazemos memória do Mistério Pascal, que engloba a paixão, morte e ressurreição de nosso Salvador Jesus Cristo. Tudo em nosso compromisso batismal decorre da Ressurreição e tudo aponta para a Ressurreição.
A água e o fogo concentram, em si, o simbolismo pascal. A passagem pelas águas, no rito do batismo, de modo particular, aponta para a travessia do mar Vermelho (Ex 14,15-31), quando os filhos de Israel deixam para trás a terra da escravidão e põem-se em marcha rumo à terra da fraternidade, onde poderão viver como irmãos e irmãs, o povo de Deus. Em outras palavras, passam da opressão para a libertação, da morte para a vida. O fogo, por sua vez, evoca a superação das trevas pela luz, da escuridão pela claridade. Carrega em si a ideia de dinamismo, de purificação (pensemos no fogo do ourives, Ml 3,2-3), mas, também, de destruição e de morte (Gn 19,23-25).
Jesus, no diálogo com a samaritana, declarou possuir uma “água viva”, que haveria de saciar a sede da humanidade, de modo que, quem a bebesse “nunca mais teria sede” e se tornaria “fonte de água jorrando para a vida eterna” (Jo 4,10-14). Tendo morrido pregado na cruz, “um dos soldados traspassou-lhe o lado com a lança e imediatamente jorraram sangue e água” (Jo 19,34). Por ocasião de Pentecostes, o Espírito Santo foi derramado sobre a comunidade nascente “como línguas de fogo, que se repartiram e pousaram sobre cada um deles” (At 2,3).
No rito batismal católico, após passar pelas águas e receber a unção crismal, o batizado recebe uma vela acessa no Círio Pascal. O simbolismo é claro: passou da morte para a vida, com Cristo, e, por outro lado, tem nas mãos a luz da fé a ser vivida, com a fidelidade esperada de um discípulo de Jesus, e se compromete a iluminar o mundo com esse fogo abrasador que afugenta as trevas da injustiça, da maldade, da morte, enfim, da falta de fraternidade.
Essa sumária evocação da teologia batismal serve de contraponto para a realidade do nosso mundo, onde os “batizados” se distanciam, cada vez mais, do projeto de Jesus e lhe dão as costas. Parafraseando Jo 1,10, podemos dizer: “e os seus não o reconheceram!” Sim, o “mundo”, do qual fala o evangelista, instalou-se nas “igrejas cristãs” e tem desviado os batizados de sua vocação, a ponto de torná-los sal insosso e lâmpada colocada embaixo de um caixote (Mt 5,13-16) ou, então, fermento que perdeu a capacidade de fermentar (Mt 13,33). Dá tristeza ver como os próprios cristãos transformaram Jesus em luz apagada e água que não lava e o Espírito Santo, em fogo incapaz de dinamizar e purificar.
As contradições sociais comprovam essa constatação. Que importância têm Jesus e a fé cristã numa sociedade onde a desigualdade e a exclusão crescem de maneira descarada? Que pensar de um país de imensa maioria “cristã”, onde se banaliza a vida e a violência e a morte acuam as pessoas, que não têm mais como se proteger? Podem se dizer cristãos os políticos corruptos que, despudoradamente, se apropriam do que é dos pobres e se destina ao bem-estar das camadas mais carentes da população? Que dizer dos inumeráveis pregadores “cristãos”, verdadeiros estelionatários da fé do povo, a quem exploram de maneira desavergonhada? E os autoproclamados conservadores que insistem em puxar as igrejas para trás, quando o Espírito Santo que Jesus nos envia quer “renovar a face da terra”? E as igrejas de massa, onde o número se tornou mais importante do que a qualidade ética e o testemunho de vida de seus membros? E se contamos as divisões e os conflitos entre igrejas e comunidades “cristãs” e entre os próprios “cristãos”? Pensemos nos abusadores de menores e de incapazes que sabemos ser lideranças de Igrejas! E no narcopentecostalismo com suas igrejas fundadas para lavar o dinheiro do tráfico! Essas breves pinceladas sobre a realidade do projeto de Jesus, na atual quadra da história, poderiam se estender mais e mais.
Você que está lendo este texto, a partir de sua experiência pessoal e de seu contexto, provavelmente, deve estar imaginando outras situações em que Jesus é desacreditado por quem assumiu, pelo batismo, o compromisso de torná-lo vivo e propô-lo, como Ressuscitado e Ressuscitador, a tantas pessoas em busca de sentido para a vida e rumo para sua caminhada. Quando se fala em “católico não praticante”, logo se pensa em quem deixou de frequentar a igreja e se tornou católico, apenas, na declaração do censo. No entanto, torna-se urgente preocupar-nos com os “cristãos não praticantes”, ou seja, aqueles que lotam as igrejas e os eventos ditos “cristãos”, cujas vidas estão longe de transparecer o ideal de Jesus de Nazaré sintetizado, com maestria, pelo evangelista Mateus, no Sermão da Montanha (Mt 5–7). De nada adianta encher igrejas com “cristãos não praticantes”, para quem Jesus se tornou logomarca gospel, um simples detalhe em sua religião.
O Mestre de Nazaré nos alertou: “nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos Céus, mas sim aquele que pratica a vontade do meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). Ou, então, “aquele que fizer a vontade do meu Pai que está nos Céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12,50), ou seja, é meu discípulo e minha discípula. Creio que as palavras de Jesus dispensam comentários. Só “cristãos” de baixíssima inteligência serão incapazes de compreendê-las e captar para onde apontam.
Esse tempo pascal pode ser oportuno para avaliarmos a qualidade de nosso compromisso batismal e a compatibilidade do que pensamos crer – nossa fé – como o que praticamos – nossa ética pessoal, nosso estilo de vida. Será preciso cuidar para não sermos daqueles que se tornaram “mundo” e, de fato, não reconhecem Jesus, a ponto de se tornarem, contraditoriamente, “cristãos não praticantes”.
Pe. Jaldemir Vitório, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE