Pesquisar
Close this search box.

A fuga do tempo

advanced divider

Carlos Roberto Drawin

“Há hora para tudo!” Assim se dizia quando se queria advertir aos apressados para a esterilidade de tudo se fazer de maneira atabalhoada e irrefletida. “Cada coisa no seu tempo!”, era o conselho dado aos afobados para que reencontrassem certa ordem sapiencial em suas vidas, pois se arriscavam nas pequenas coisas, desatentando das grandes.  E o poeta ensina aos pressurosos amantes: “não se afobe, não/Que nada é pra já/O amor não tem pressa/Ele pode esperar em silêncio/Num fundo de armário/Na posta-restante/Milênios, milênios no ar” (1). O cuidado não se impacienta com a fugacidade dos momentos e das emoções passageiras, preserva “milênios, milênios no ar”.  A preservação do amor por milênios não seria uma vã ilusão? Em outro diálogo poético, o tempo personificado zomba do amante: “batidas na porta da frente/é o tempo/ eu bebo um pouquinho pra ter/argumento/mas fico sem jeito calado, ele ri/ ele zomba do quanto eu chorei/porque sabe passar/ eu não sei”(2).  Cobrindo de folhas mortas o amor perdido, o tempo “apaga os caminhos”, espalhando cinzas e deixando que os amores “terminem no escuro/ sozinhos”. Ele ri, enquanto “recordo um amor que perdi”. Logo, porém, o tempo percebe a sabedoria da recordação do amor perdido e que “morrer de amor” é “tentar reviver”.  O tempo, então, rói de inveja do amante, pois ele só sabe passar, fluir incessantemente para perder-se no vazio. Ele inveja, por não saber esquecer, porque não tem memória e só quem a tem pode esquecer, perdoar e renascer. A memória resgata o passado, assim como a atenção reflexiva fixa o presente e a esperança, atualizando o futuro o traz para o presente imprimindo-lhe um sentido. Memória narrativa, atenção reflexiva e esperança ativa são recursos para nos abrigarmos da voracidade do tempo, enganá-lo e assim fazendo conquistarmos alguns vislumbres da eternidade.  A intuição poética, ao personificar o tempo, soube dizer isso: ele “no fundo é uma eterna criança/que não soube amadurecer”.  Somos, então, surpreendidos: como o tempo incessante, tudo dissolvendo e desestabilizando “no fundo”, em sua verdade, não sabe passar, permanecendo como uma “eterna criança”?

Todos os esforços de estancar o fluxo do tempo de certo modo fracassam. No entanto, somos continuamente instados a não nos entregarmos à sua força de dissolução, de nadificação. Por que haveria em nós esse ímpeto de resistência, essa renovada aposta na capacidade do tão frágil amor durar milênios? Na insistência de reviver o perdido na recordação? Por que continuamos a escrever, compor, rezar, dançar e discernir beleza e consolo no efêmero de um gesto amigo, de um aperto de mão, na provisoriedade de uma canção? Não seria por que ao ironizá-lo como uma “eterna criança” o poeta não estaria captando a eternidade no avesso do tempo?

Essas interrogações nos levam ao antigo episódio de um jovem de excepcional talento, ansioso em encontrar a verdade que o libertasse das confusões de seu coração. Como ela tardasse a chegar, o jovem se entregava à angústia que transbordava em muitas lágrimas: “por quanto tempo, por quanto tempo andarei a clamar: amanhã, amanhã? Por que não há de ser agora? Por que o termo das minhas torpezas não há de vir já, nesta hora?”(3)  Subitamente o agora veio e ficou. Ele escuta algo, como o verso de uma canção infantil e é por ela é arrebatado, o induzindo a uma outra percepção de sua vida. Naquele momento tão fugaz transluziu a transcendência: “…penetrou-me no coração uma espécie de luz serena, e todas as trevas da dúvida fugiram.”

Devemos esse relato a Agostinho, sábio e santo, um dos luminares de nossa civilização. Após ter narrado em suas “Confissões” essa passagem crucial de sua conversão, na qual o sentido da existência irrompeu na mais banal circunstância, ele interrogou filosoficamente o tempo e o fez à luz da eternidade.  Meditando sobre o primeiro versículo do “Gênesis” – “No princípio Deus criou o céu e a terra” – ele enfrentou uma difícil questão: se Deus criou o mundo num momento do tempo, o que Ele fazia antes? Por que não teria criado antes o mundo? Seria por acaso por impotência ou arbítrio? Perguntas que soam vãs feitas por nossa inteligência finita, por aprisionada nas amarras do tempo. Mas, foi justamente a impossibilidade de respondê-las em sua formulação, postas como se pudéssemos saber de um tempo anterior à criação, que deu ao filósofo uma nova pista, um novo horizonte de pensamento: a eternidade não é como um momento presente estendido indefinidamente de modo a distinguirmos entre o antes e o depois da criação. Ela é radicalmente outra em relação ao tempo no qual nós humanos estamos mergulhados. Por sua radical alteridade não há, portanto, como alcançá-la e dela tomarmos posse.

Apesar disso, como já foi dito, lutamos o tempo todo com e contra o tempo e ao falarmos assim – “o tempo todo”, como se houvesse um “todo” na infinita sucessão dos momentos – testemunhamos a eternidade, porque em nós habita a imagem da eternidade.  As dúvidas fugiram de Agostinho, que não podia fugir de si mesmo, quando ele quebrou o espelho do narcisismo. Este só podia refletir as misérias do seu egocentrismo e foi preciso quebrá-lo para encontrar no “fundo mais fundo” não a sua própria imagem, mas a da Alteridade.  Nós também não a encontramos na imediatidade de um ato mágico. A eternidade se realiza na distensão do tempo quando narramos, relembramos, criamos e recriamos as nossas vidas, quando forjamos novos mundos. Por isso, na palavra do poeta, o tempo que tudo corrói, se corrói com inveja de mim, de nós, de todos os que em meio aos destroços por ele deixados, insistimos no amor.

Carlos Roberto Drawin é professor emérito do departamento de Filosofia da FAJE

(1) “Futuros amantes”, letra e música de Chico Buarque

(2) “Resposta ao tempo”, de Aldir Blanc e Cristovão Bastos

(3) “Confissões”, de Santo Agostinho

Crédito: Imagem de Rorozoa no  Freepik
...