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Viver sob a ação do Espírito: a atuação da graça na alma

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Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ

Celebramos Pentecostes todos os anos solenemente e naquele dia recordamos toda a sua ação em nós. Mas corremos o risco de fazer de Pentecostes um dia festivo apenas, esquecendo-nos de que todos os dias somos chamados a viver movidos pelo Espírito.

A experiência espiritual radica-se na realidade da vida da graça, que nos é dada a cada dia, em cada momento, para nos fazer sentir e saborear o Amor derramado em nossos corações. Contudo, em meio à correria das nossas muitas atividades, nem sempre nos damos conta da ação do Espírito no mundo e em nós.  Será preciso, em algum momento do dia, pararmos nossa frenética corrida para tomar consciência agradecida da ação da graça. Um modo simples de perceber a ação do Espírito em nós é reparar se houve, ao longo da jornada, um aumento de nossa fé, esperança e caridade, as chamadas virtudes teologais. Pois Inácio nos ensina, nos Exercícios, que toda “consolação espiritual” produz esse efeito (cf EE 316). E mesmo quando, por diversas razões, encontramo-nos mergulhados na aridez da desolação espiritual e tudo se torna obscuro e sem sabor, a graça de Deus não nos abandona (cf. EE 324).

O auxílio divino permanece sempre, ainda que pode se dar que a pessoa não possua uma clara consciência dele (cf. EE 320).

Em qualquer nível que se examine a vida espiritual, ali sempre encontraremos Deus operando. Como já escrevia Inácio a Pedro Canísio: “Deus é quem cria em nós o querer e o fazer, em virtude de seu beneplácito” (Epp. I, 390). É surpreendente ouvir estas palavras de um homem que é tido por muitos como um inveterado voluntarista, mas que pelo contrário atribui a maior importância aos movimentos da alma e àquilo que nela é produzido. E afirma que “não está em nós o procurar-nos ou ter grande devoção, amor intenso, lágrimas e qualquer outra consolação espiritual, mas tudo isso é dom e graça de Deus N.S.” (EE 322).

Com frequência atribuímos a nossos esforços e planejamentos os avanços na vida espiritual. Cremo-nos dignos de receber as graças divinas pois fizemos por merecê-las. Colocamos nossa confiança muito mais nos meios humanos que podemos manipular do que na ação divina sobrenatural. Partilho com vocês um texto da Constituição da Companhia de Jesus. As Constituições da Companhia de Jesus, ao contrário do que poderia parecer, não são simplesmente ordenações jurídicas limitadas aos jesuítas. São um texto espiritual, de alcance muito mais amplo, e nos permitem ver como Inácio percebia a ação de Deus no cotidiano de seu trabalho. Leiamos a parte  onde Inácio nos faz ver que os meios humanos recebem a sua eficácia da ordem sobrenatural:

“Para conservar e desenvolver não somente o corpo, isto é, aquilo que é externo da Companhia, mas também o seu espírito, e para alcançar o seu fim que é ajudar as almas a alcançarem o seu fim sobrenatural, os meios que unem o instrumento com Deus e o dispõem a deixar-se guiar pela sua mão divina são mais eficazes do que aqueles que o dispõem aos homens. Tais são os meios da bondade e das virtudes, especialmente a caridade e a intenção pura e a familiaridade com Deus N.S. nos exercícios espirituais de devoção e no zelo sincero pelas almas, alheio do buscar qualquer outra vantagem senão a glória Daquele que as criou e redimiu. Portanto, consideramos todos juntos no seu conjunto, devemos cuidar que todos da Companhia de Jesus se dediquem às sólidas e perfeitas virtudes e às coisas espirituais, das quais deve ter mais atenção do que das letras e dos outros dons naturais e humanos. De fato, são os dotes internos que devem tornar eficazes aqueles externos em vista do fim que se persegue” (Const. 813).

Nada mais claro para Inácio do que o fato que a disposição do homem para se tornar um instrumento perfeito de Deus nasce da sua vida interior: não há eficácia apostólica sem união a Deus na interioridade[1]. Inácio sempre esperava de Deus o fruto a ser obtido em cada exercício espiritual. De fato, ele escreve que os EE não são outra coisa do que “todo método para preparar e dispor a alma…” (EE 1).

“Preparar” e “dispor”: eis o que podemos fazer e pedir a graça a Deus!

Ao tratar das atitudes que devem estar presentes em alguém que quer entrar para a Companhia de Jesus, Inácio diz em seguida que tudo o que a Companhia de Jesus tem a oferecer ao jovem é ser um instrumento para ajudá-lo a receber a graça de Deus:

“Quanto à vontade: tenham o desejo de toda virtude e perfeição espiritual; sejam serenos, constantes e corajosos nas iniciativas para o serviço de Deus, zelantes pela salvação das almas, e por isso afeiçoados ao nosso Instituto, que está diretamente ordenado a ajudá-los a dispô-los a conseguir o seu único fim das mãos de Deus Nosso Criador e Senhor” (Const. 156)

Mesmo nos momentos em que somos chamados a usar de nossas faculdades humanas ao máximo, Inácio não se esquece de lembrar que procuremos sempre pedir a Deus que seja Ele a mover nossa vontade (EE 180). Trata-se sempre, em tudo, de buscar em primeiro lugar “a moção do amor de Deus” (EE 184). E, nas ocasiões em que procuramos a vontade do Senhor usando meios humanos, Inácio deseja que, ao final, peçamos uma confirmação por Deus. Esse pedido indica a humilde determinação do ser humano que se reconhece incapaz de buscar a vontade de Deus sem a graça e a luz do Senhor.

E ao mesmo tempo sabe por experiência que Deus N. Senhor está sempre pronto derramar sobre nós uma medida transbordante de graça (cf. Lc 6,38). Para Inácio trata-se de um princípio universal. Assim lemos também nas Constituições: “Em geral, quanto mais alguém se unir a Deus N.S. e mais se mostrar generoso para com ele, mais estará preparado para receber Dele, dia após dia, maiores graças e dons espirituais”. (Const. 283).

Seria ser infiel ao espírito de Santo Inácio agir como se o progresso da vida espiritual não encontrasse a sua fonte em Deus mesmo. Isso não quer dizer que se deva descuidar da colaboração necessária, da correspondência à graça. Mas é preciso sempre manter essa visão de fé de que tudo desce do alto (Tg 1,17), reservando por assim dizer a possibilidade para Deus tomar a iniciativa na nossa vida espiritual: o Espírito sopra onde quer! Inácio o sabia muito bem por experiência própria.

Docilidade às graças: Ao mesmo tempo Inácio pretende salientar que é sob a ação do Espírito Santo que o exercitante descobre, progressivamente, o seu próprio caminho, designado por Deus para ele. É o Espírito Santo o ator principal da experiência humana.

O P. Géza descreve assim a presença e a atuação do Espírito Santo no exercitante:

“Os Exercícios Espirituais são, no seu conjunto orgânico, uma Pedagogia sobrenatural na qual o Espírito instrui, move, nutre o exercitante, orientando-o para uma vida divina sempre mais florescente. O crescimento na graça ultrapassa absolutamente as exigências e as forças naturais do homem: nem a inteligência nem a vontade pelo seu próprio esforço podem elevar o exercitante à esfera luminosa da graça. Só o Espírito Santo é capaz de introduzir na comunhão com o Deus vivo, por meio da inserção progressiva em Jesus Cristo, comunicando-lhe una satisfação espiritual interna”[2].

Segundo Inácio, tudo o que existe de bom neste mundo provém de Deus. A obra de santificação compete primariamente a Deus. Somente Ele pode entrar e sair da alma, movê-la e atraí-la a si, inflamá-la de amor, conforme a sua vontade (EE 330). É próprio de Deus comunicar-se à sua alma devota, abrasando-a no seu amor e louvor, dispondo-a no caminho do seu maior serviço (EE 15). Todo bem que possamos experimentar é dom e graça de Deus, N. Senhor (EE 322) e faz parte da pedagogia divina dialogar com a alma de modo que o homem seja consciente plenamente de que os dons e graças divinas não são em modo algum alcançados devido ao trabalho ascético da alma.

Na nossa vida precisamos contar sempre com a graça de Deus, pedi-la sem cessar e procurar sermos fiéis a ela. A máxima fidelidade que podemos oferecer à graça de Deus é, em todas as situações, colocarmo-nos em uma atitude de disponibilidade para receber os dons divinos, cooperando com ela no exercício de nossa liberdade.

Gosto sempre de recordar que um dos títulos do Espírito é “purificador”. Já nos lembrava o profeta Ezequiel: “Aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei. Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito” (Ez 36,25-27).

Que o Espírito Santo siga iluminando a Igreja tornando-a dócil às suas manifestações e discernindo também as diversas situações onde não é o Senhor a nos chamar.  Pois, segundo Inácio, a graça e o auxílio de Deus são requeridos seja para conhecer os próprios pecados como também para corrigir-se deles (EE 240, 243). Assim que dentro do trabalho indagador por reconhecer o próprio pecado (feitos com a assistência gratuita de Deus (EE 25, 44), manda propor de emendar-se “com a sua graça” (EE 43).

Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

[1] Cf. Charles-André BERNARD, L’homme spirituel selon Saint Ignace. Pro manuscripto, 32. O manuscrito é inédito e se encontra na residência da Universidade Gregoriana em Roma.

[2] Géza KOVECSES (ed.), Exercicios Espirituais, Porto Alegre 1966, 15, nota 1.

Foto de Billy Pasco na Unsplash

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