Pesquisar
Close this search box.

“Maria escolheu a melhor parte, e esta não lhe será tirada” (Lc 10,42b)

advanced divider

Márcia Eloi Rodrigues

No ambiente sociopolítico em que estão situadas as narrativas dos Evangelhos, bem como os textos do Novo Testamento, assim como no campo religioso, mulheres e homens não possuíam as mesmas atribuições. Nesse caso, “as mulheres, como também as crianças e os escravos, não estavam obrigadas a recitar o Shema, a oração matinal, nem as orações às refeições”[1]. Da mesma forma, elas não tinham “autorização para estudar a Torá. Assim, Doutores da Lei não a explicavam a elas”[2]. Isso significa que as mulheres não tinham direito à vida intelectual, não podiam ser discípulas dos rabinos. Nas sinagogas, elas podiam participar, mas não com a mesmas exigências cobradas dos homens.

Nesse horizonte dominado pelo masculino, Jesus rompe as barreiras sociais ao dirigir-se às mulheres como interlocutoras de seu ensinamento, como pode ser observado nas imagens que compõem as parábolas lucanas (Lc 13,20-21: a mulher que fermenta a massa; 15,8-10: a mulher que procura a moeda perdida) e no ensinamento de Jesus sobre a ressurreição (Lc 20,27-30). Também é notória a importância que Jesus dá às mulheres nas diversas narrativas de curas a mulheres (Lc 8,40-56: a filha de Jairo e a mulher com hemorragia; Lc 13,10-17: a mulher encurvada). E não podemos esquecer as mulheres que seguiam Jesus (Lc 8,1-3: Maria, chamada Madalena, Joana, Susana e muitas outras). É, pois, nessa perspectiva aberta ao feminino, apresentada no Evangelho segundo Lucas, que abordamos a conhecida narrativa de Marta e Maria (Lc 10,38-42), com a finalidade de refletir acerca da “ruptura dos estereótipos” que a narrativa nos propõe como paradigma.

A narrativa lucana de Marta e Maria está situada no contexto da caminhada de Jesus a Jerusalém, que constitui não apenas um deslocamento físico, mas representa, na estrutura geral do evangelho segundo Lucas, o contexto narrativo da catequese de Jesus a seus discípulos. Nesse sentido, enquanto caminham com Jesus rumo a seu êxodo, os discípulos são instruídos no modo de caminhar com Deus. Por isso, a maior parte dos ensinamentos de Jesus a seus discípulos é localizado nesse bloco narrativo.

Pois bem, enquanto caminhavam, entram num certo povoado e, em seguida, uma mulher chamada Marta recebe Jesus em sua casa. Essa mulher tem uma irmã chamada Maria, que fica sentada aos pés de Jesus, seu convidado, enquanto Marta, sua irmã, se ocupa do serviço (de casa). Fazendo uma leitura superficial dessa narrativa, logo constatamos que se trata de uma cena de hospitalidade. No entanto, é no diálogo entre Marta e Jesus que se evidencia uma reviravolta nos “papéis” assumidos pelas mulheres na sociedade daquele tempo.

Bem, que papéis são esses? A mulher estava restrita ao âmbito doméstico, era quem se ocupava dos cuidados da casa, e estava sob a tutela do homem, seja marido, pai ou irmão. E, dessa forma, ela recebia bem seus convidados. No relato não se menciona outro personagem além das duas mulheres e Jesus. Nesse contexto, pensemos que Marta representa esse modelo social, enquanto Maria representa a reviravolta que a experiência com Jesus suscita nas mulheres de seu tempo. E que reviravolta seria essa?

Maria é descrita no papel de discípula, que era algo restrito apenas aos homens. Basta analisarmos sua posição descrita no texto: “… Maria, que sentada aos pés do Senhor, ouvia sua palavra” (Lc 10,39). Estar aos pés de alguém é atitude do discípulo, conforme Lucas descreve Paulo em At 22,3 ao falar de sua instrução “aos pés de Gamaliel”. Outro elemento importante é a atitude de “ouvir”, pois o discípulo aprende de seu mestre ouvindo seus ensinamentos e instruções. Atitude de Maria em relação ao Senhor.

Dessa forma, a imagem que Lucas apresenta de Maria é a de uma discípula, posta logo no início da narrativa. Contudo, a reação de Marta à atitude de Maria cria o contexto de ensinamento para o leitor atento, que acompanha essa catequese. Incomodada com a atitude de Maria, Marta se dirige a Jesus com o seguinte questionamento: “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha a servir? Dize-lhe que me ajude!” (Lc 10,40). Em outras palavras, Marta se incomoda que Maria não se adeque aos padrões estipulados pela sociedade da época. Quer de Jesus que ordene a ela que volte a ocupar o papel de antes. Mas a resposta de Jesus é surpreendente! Ele legitima a escolha de Maria ao reiterar a Marta que sua irmã escolheu a melhor parte: ser discípula. E o interessante é que foi escolha de Maria. O texto não diz que Jesus a tenha chamado. Isso é importante, pois diz respeito à tomada de consciência do que é melhor para ela, do que ela quer, e não do que lhe é imposto. E, por isso mesmo, o que ela escolheu não lhe será tirado. Maria é protagonista de suas escolhas, de seu modo de viver sua vida, de ocupar o papel que ela quer na comunidade, na sociedade e no mundo. Maria se apresenta, assim, como paradigma de que a mulher pode e deve assumir papel relevante na realidade em que vive.

 

Márcia Eloi Rodrigues é professora e pesquisadora no departamento de Teologia da FAJE

 

[1] COLARES, Karen. Despertar: os primeiros passos para construção de teologias feministas. São Paulo: Editora Recriar, 2024, p. 121.

[2] COLARES, 2024, p. 121.

...