Francys Silvestrini Adão SJ
No último dia 3 de junho, aos 98 anos, Jürgen Moltmann, o “teólogo da esperança”, viveu sua páscoa. Este texto deseja ser uma pequena homenagem a este pensador, discípulo de Jesus, que nos deixou um belo, inspirador e provocante legado teológico. As reflexões aqui apresentadas baseiam-se, principalmente, em três obras significativas de sua teologia – “O Deus Crucificado” (1972), “Trindade e Reino de Deus” (1980) e “O Caminho de Jesus Cristo” (1989). Nosso desejo é destacar alguns nomes e opções intelectuais e existenciais que podem ser considerados um fundamento “subterrâneo” da densa reflexão teológica moltmanniana.
Na obra de Moltmann, há uma convergência na exegese e no uso das Sagradas Escrituras. Por um lado, os Evangelhos sinóticos gozam de precedência em dois assuntos particulares: 1) quando se associa a pessoa de Jesus ao advento do Reino de Deus; 2) quando se reflete sobre a historicidade dos eventos da paixão. Por outro lado, o autor recorre largamente às teologias joanina e paulina para aprofundar o sentido teológico da vida, morte e ressurreição de Jesus e sua relação com a revelação do Deus trinitário. Podemos afirmar que, em relação à sua fundamentação bíblica, a teologia moltmanniana se apresenta como uma releitura (ainda que não sistemática) de toda a teologia cristã a partir de uma hermenêutica contemporânea da teologia paulina da cruz e das teologias sapienciais – logo, cósmicas – do logos e da sophia, desenvolvidas principalmente por Paulo, João e suas comunidades. De fato, a teologia de Moltmann não quis ser somente cristocêntrica, mas sobretudo estaurocêntrica, propondo assumir, até o fim, as consequências teológicas da sabedoria da cruz.
Em relação às opções filosóficas, basta uma leitura rápida de algumas páginas de Moltmann para captarmos o teor altamente crítico em relação ao conceito de Deus desenvolvido no cristianismo ao longo da história, de modo especial em contato com a filosofia grega antiga. A ideia predominante de um deus imutável e impassível não se ajusta bem à revelação do Deus bíblico e dificulta a compreensão do evento da paixão de Jesus. Por isso, o teólogo alemão, embora atento ao passado filosófico distante, prefere dialogar com os grandes filósofos dos últimos séculos, que já refletiram a partir do paradigma da história. Nesse diálogo, merece destaque o filósofo E. Bloch e seu “Princípio Esperança”, que influenciará não somente a teologia da esperança de Moltmann, mas também será importante na elaboração da forte orientação escatológica de seu pensamento. Além disso, Moltmann convoca um grupo considerável de pensadores judeus confessantes, examinando cuidadosamente sua concepção do messianismo. São eles: Buber, Scholem, Ben-Chorin, Rosenzweig, entre outros. Também a noção de Shekinah, importante para compreender o tipo de relação que o Deus das Escrituras estabelece com sua criação, é retirada deste diálogo.
Não há dúvida de que a teologia de Moltmann deve muito a esses pensadores, em especial no que toca a sua concepção de história da salvação, de eleição, do lugar de Israel no plano de Deus e da relação entre a criação primordial e a nova criação no fim dos tempos. Sem abrir mão da especificidade cristã, o teólogo busca reinserir o cristianismo em seu contexto religioso-cultural primitivo. Não se trata de negar a herança grega da teologia cristã, mas de redescobrir sua força a partir de uma compreensão mais aprofundada da relação de Deus com o seu povo – e da interpretação que o próprio povo judeu faz dessa história. Em contato com esses filósofos, tanto judeus quanto não judeus, Moltmann pôde encontrar alternativas aos modelos conceituais antigos que já não conseguiam explicitar o mistério da fé cristã. Essas filosofias ajudaram-no a ler as Escrituras com novo olhar, a descobrir a profundidade da relação de Deus com sua criação e com o sofrimento do mundo e, especialmente, a afirmar com firmeza a abertura radical do mundo a esse Futuro que vem a nós.
Essa mesma abertura intelectual pode ser encontrada em relação a seus interlocutores propriamente teológicos. Nota-se sua busca de diálogo e debate com a teologia de seu tempo, oferecendo também uma atenção importante às diversas tradições eclesiais e áreas culturais. É justamente neste ponto que podemos notar a maior evolução no modo de Moltmann fazer teologia. Em seus livros mais recentes, enquanto a lista de teólogos protestantes germânicos continua praticamente a mesma (com um ou outro acréscimo pontual, menos significativo para o conjunto), a lista de teólogos católicos aumenta consideravelmente: além dos já anteriormente conhecidos Rahner, Küng, Metz, Balthasar, Gutiérrez e Sobrino, podemos ver outros nomes como Kasper, Chardin, González Faus, Pagola, Schillebeeckx, Romero, Boff, Croatto, Cardenal, Galeano… Notamos nesse fato uma abertura crescente a outros países europeus e latino-americanos. O diálogo com a teologia ortodoxa, começado no estudo sobre a Trindade, continua importante, sobretudo no diálogo com Lossky e Evdokimov (que contribuem com a reflexão sobre a relação entre criação e salvação e sobre a noção de divinização da humanidade em Cristo, cara ao mundo oriental). Moltmann continua também atento à mística cristã, especialmente à mística feminina. É nesse contexto que ele dá espaço às experiências de Hildegard von Bingen e de Catarina de Sena. Vale ressaltar também que, na apresentação do livro de 1989, Moltmann agradece explicitamente a sua esposa, Elisabeth Moltmann-Wendel, por abrir seus olhos em relação às teologias feministas, o que permitiu certa relativização de seus juízos masculinos unilaterais.
Gostaríamos de destacar quatro nomes que atravessam a obra do teólogo germânico e que nos parecem centrais, por motivos distintos. Primeiramente, Lutero é a inspiração teológica fundamental de Moltmann, o que transparece de modo implícito ou explícito em vários momentos. Dos autores contemporâneos, o diálogo mais importante se dá, sobretudo, com Karl Barth, no mundo protestante, e com Karl Rahner, no mundo católico. De fato, Moltmann dialoga com esses dois gigantes que mudaram o rumo da teologia do séc. XX, concordando com eles em alguns pontos, mas também criticando as concessões excessivas feitas por ambos a um pensamento estranho ao mundo bíblico. O último teólogo que destacamos nos parece menos importante como autor, mas talvez seja o mais importante como pessoa que influenciou a teologia moltmanniana: trata-se de Dietrich Bonhoeffer. O exemplo deste mártir parece ter alimentado a busca teológica de Moltmann, bem como sua esperança. Afinal, toda reflexão teológica cristã só pode brotar de um mesmo terreno fértil: a fé engajada dos discípulos de Cristo.
De que maneira esse brevíssimo sobrevoo sobre algumas opções dialogais de Moltmann pode inspirar nosso labor teológico contemporâneo? Damos destaque a alguns pontos. O alcance de sua teologia se expandiu na medida em que ele também expandiu suas relações com outros modos de ver o mundo e de se relacionar com Deus. Algumas ideias-chave e convicções perpassam a sua obra, enriquecendo-se a partir do encontro com outras tradições: a confissão de um Deus que se deixa afetar (pathos) porque é Amor, uma nova compreensão da dimensão messiânica da missão de Jesus e de seus discípulos, uma perspectiva teológica ecológico-cósmica, uma orientação fundamental voltada à esperança escatológica, uma convocação geral a uma ética de relações justas com o mundo e com os outros. Além disso, sua abertura à realidade de outros contextos socioculturais foi um testemunho concreto de sua fé na implicação cósmica do mistério da salvação em Deus e da necessidade de uma ética consequente com essa fé; sua abertura a outras comunidades eclesiais – católicas e orientais – permitiu dar um novo sopro à sua teologia, abrindo-se a uma perspectiva ecumênica, cada vez mais pneumatológica; sua abertura à mística e ao feminino impediu sua reflexão de cair na armadilha tão frequente de identificar o mistério de Deus tanto com o homem quanto com a mulher, mas abriu o espaço para uma compreensão mais adequada do Deus trinitário, que está na origem da relação entre os dois e do cuidado que eles devem ter para com o mundo criado.
Como nós pudemos vislumbrar aqui, Moltmann não está sozinho em sua esperança: junto com outros homens e mulheres, crentes ou agnósticos, católicos, ortodoxos ou protestantes, do sul ou do norte… todos caminhamos em direção ao último Shabbat, a esta festa eterna da Vida, ao encontro d’Aquele que vem.
Francys Silvestrini Adão SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
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