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Lembrança da infância

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Marília Murta de Almeida

Há muito tempo venho lendo e relendo a obra de Clarice Lispector, ao mesmo tempo em que estudo filosofia e teologia. E, mesmo sempre espantada com a quantidade de novas nuances continuamente descobertas, tenho uma página preferida. Trata-se da narrativa da primeira experiência do personagem Martim, no romance A maçã no escuro, de limpar o curral da fazenda em que trabalhava. O relato é detalhado e nos lança na atmosfera do curral, com cheiros e sons próprios. No final, nos surpreende com uma alusão ao nascimento de Jesus. Leiamos um trecho:

                     A névoa evolava-se dos bichos e os envolvia lenta. (…) O cheiro cru era o de matéria-prima  desperdiçada. Ali se faziam vacas. Por nojo, o homem que repentinamente se tornara de novo abstrato como uma unha, quis recuar; enxugou com o dorso da mão a boca seca como um médico diante de sua primeira ferida. (…) Uma pessoa pouco corajosa poderia vomitar à fragrância imunda (…). Martim era essa pessoa pouco corajosa que nunca tinha posto mãos na parte íntima de um curral. No entanto, embora desviando os olhos, ele a contragosto pareceu entender que as coisas se tivessem arranjado de modo a que num estábulo um dia tivesse nascido um menino. Pois estava certo aquele grande cheiro de matéria. Só que Martim ainda não estava preparado para tal avanço espiritual. Mais que temor, era um pudor. E hesitou à porta, pálido e ofendido como uma criança ao lhe ser revelada de chofre a raiz da vida.

 

O cheiro de matéria, o relato lento da hesitação de Martim, a compreensão a contragosto, a ideia de revelação que de repente penetra o texto sem nenhuma preparação, a surpresa do nascimento do menino em um lugar como aquele, tudo isso configura uma narrativa extremamente poderosa para pensarmos o fato da encarnação em contexto teológico. Mais ainda, a noção de que esse nascimento representa um avanço espiritual para o qual é preciso estar preparado. Sem esse preparo, não o acolhemos.

Tal avanço espiritual aponta para a realidade criada pela encarnação de Jesus e que lemos tão belamente no prólogo do Evangelho de João: a palavra se fez carne e habitou entre nós. A constatação da falta de preparo para receber essa novidade também está no texto de João, ao apontar que a luz veio para o mundo, mas o mundo não a reconheceu. As palavras de Clarice Lispector nos lançam no núcleo mesmo dessa tensão: algo se deu no meio de nós e sentimos sua força, mas é preciso preparo para acolher e entender o que se deu, dada a extrema novidade que carrega.

Uma sofisticada relação entre espírito e matéria é o cerne da mensagem cristã e é o que assombra Martim em sua entrada no lugar em que se faziam vacas. Um lugar carregado de organicidade, mas que, na narrativa clariciana que ecoa o evangelho, tem o poder de evocar o espiritual. Essa surpreendente reflexão implícita na experiência de Martim tinha sido para mim a justificativa para que eu tivesse elegido essa página como a minha preferida no universo da obra de Clarice Lispector. Mas ao ler um trecho do livro Autobiografia gastronômica, de Francys Adão, em que ele reflete sobre a força da memória gustativa para a experiência gastronômica de cada um de nós, fui lançada em minha mais saborosa lembrança de infância e que certamente está na base sensorial de minha preferência.

Na infância, eu frequentemente passava férias com meus tios e primos em uma fazenda à beira do rio Jequitinhonha. Todos os dias cumpríamos um ritual ao amanhecer: acordávamos assim que o dia clareava; cada um pegava sua canequinha de plástico, de diversas cores; colocávamos um pouco de açúcar no fundo e saíamos para o curral, eu sempre junto de uma prima; subíamos na cerca do curral e ficávamos sentados na tábua mais alta; a cor da manhã era sempre de um azul ainda claro e límpido, o cheiro do curral naquela hora era intenso, doce, profundo; o ar quase frio da manhã tocava minha pele como carícia; o vaqueiro começava a ordenhar e eu olhava com atenção inteira cada gesto dele; o som do leite caindo no recipiente e o cheiro novo do leite faziam tudo ainda mais prazeroso; aí ele vinha até nós na cerca do curral e ia enchendo as canequinhas; na primeira vez só vinha espuma; tomávamos rapidamente aquele espumante de leite morno pelo calor do interior da vaca e levemente adocicado; depois vinha o segundo copo, agora de leite sem espuma; bebíamos e estávamos prontos para o dia.

O sabor daquelas manhãs me acompanha até hoje. Criança, era tão sem preparo quanto Martim. Mas uma intuição espiritual certamente me guiava e me ajudava a não perder nada daquela experiência repetida todos os dias. Ali se dava uma entrega sensorial ao momento que me marcou de modo indelével. O sabor do leite e a sensação de saciedade que se seguia me abrem para a vida de um modo único. Sabor, cheiro, frescor, beleza, cumplicidade e gratidão se juntavam.

A leitura da narrativa clariciana da experiência de Martim gera em mim um laço com essa minha própria lembrança que repousa nas raízes do que sou. Minha preferência não é só por admiração intelectual, ela revela um traço profundo da especificidade do meu modo de estar no mundo, marcado por sabor, cheiro e prazer. A minha memória gustativa dessa experiência é tão intensa e completa que evoca, por gratidão, a presença do sopro do espírito que eu nem sonhava perceber.

Marília Murta de Almeida é professora e pesquisadora nos departamentos de Filosofia e Teologia da FAJE

 

Foto: Pixabay

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