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A Reconciliação em uma sociedade marcada pela diversidade (1ª PARTE)

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Alfredo Sampaio Costa, SJ

Ministrando o curso sobre o Sacramento da Penitência, muitas questões veem à mente. Situando o tema da reconciliação em meio ao complexo mundo da diversidade, deparei-me com um luminoso artigo[1] no qual a autora, Teresa Okure, afirma e trata da reconciliação como uma chave teológica para tratar a realidade complexa de nosso mundo. A partir da possibilidade de uma profunda diversidade da cidade de Corinto no primeiro século, a autora afirma que o propósito principal de Paulo ao escrever aos coríntios foi ajudá-los a se relacionar com “o outro” dentro da comunidade cristã e também com sua própria pessoa.  A autora prossegue com as consequências que se podem aprender do propósito de Paulo de reconciliar com Deus e com os outros em 2 Cor 5,14-21. Em seu ministério de reconciliação, o antigo super-fariseu cruzou duas fronteiras, como se vê, por exemplo, na sua afirmação de  que mulheres sejam suas co-ministras. Em segundo lugar, Paulo tentou persuadir a outros a se juntar a ele na reflexão do sentido de seu chamado a ser ministros da reconciliação em situações concretas. Permito-me apresentar algumas ideias deste artigo, comentando-as oportunamente.

Nosso mundo é marcado por uma cada vez mais crescente consciência. Esta aguda consciência por vezes acaba negativamente sustentando esforços agressivos para consolidar nossa posição e identidade contra incursões ou até mesmo absorções pelos outros. O fundamentalismo (político, econômico e religioso) com suas ações aliadas de terrorismo e militarismo são uma clara evidência desse aspecto negativo. Mas, positivamente, a consciência gera também esforços sustentáveis para cruzar as barreiras que existem entre as pessoas, povos e culturas e criar assim laços de solidariedade e colaboração com os outros. O mundo do “inter” (interfé, intercultural, interdisciplinar, interdependência, comunidade internacional) abarca e evidencia essa tendência positiva de diálogo e superação de diferenças.  Nem sempre o “outro” existe somente no campo inimigo. Mas é inegável que o “outro” é uma realidade da nossa vida (seja ela religiosa ou política) que temos que enfrentar, queiramos ou não.  A pergunta que não quer calar é: como nos dirigimos à inevitável presença do outro no nosso trabalho de evangelização de modo que ninguém seja marginalizado, absorvido, manipulado, ou que, para sobreviver, tenha que erguer barricadas para assegurar-se e se proteger uns dos outros?  

Em Corinto, Paulo se viu diante do desafio de como levar adiante o ministério ao qual se sentiu chamado de proclamar o evangelho em um contexto de tamanha diversidade. Onde ele tinha que atender a “outros” muito diversos. Examinando a sua experiência, poderemos também aprender como nós, em nossos contextos igualmente diversificados e muitas vezes conflitivos, somos chamados a ser “embaixadores de reconciliação”.

O “Outro” na comunidade de Corinto

Das cartas de Paulo e de outras fontes antigas podemos ver que Corinto era demograficamente, socio-culturalmente e economicamente rica na existência do outro. Na sua primeira carta, Paulo menciona três grupos: os judeus, os gregos e o “nós” (os cristãos, compostos por judeus e gregos) (1 Cor 1, 22-23). Ele identifica as ideologias destes grupos como: demanda por sinais (os judeus), busca por sabedoria (gregos) e a pregação de Cristo crucificado (os cristãos).  Poderíamos nos perguntar a qual delas nos identificamos mais?

Como cidade grega (geográfica e culturalmente, uma vez que as cartas são escritas em grego) e colônia romana (política e economicamente), Corinto tinha em si uma dupla identidade. Na esfera religiosa, as divindades da cidade incluíam divindades gregas, romanas e egípcias (Afrodite, Apolo, Atenas, Posseidon, Zeus, Dionísio, Ísis). Muitos pregadores religiosos e filósofos (estoicos, epicuristas, cínicos) muito provavelmente haviam frequentado a cidade juntamente com atletas e comerciantes da Ásia e da Europa e investidores em busca de novas oportunidades na nova cidade.  

Os “outros” dos quais se fala em Corinto não se reduzem somente aos três grupos com as linhas ideológicas acima apontadas. Entre os fiéis também existia uma diversidade de pessoas. Entre os pregadores, estão Paulo, Apolo, Cefas (1 Cor 1,12; 3,4-6.22-23), Sóstenes, Timóteo, Barnabé, Tiago o irmão do Senhor e uma multidão de “outros pregadores” que competiam contra Paulo. Como um judeu helenístico, o próprio Paulo tinha sido visto como um “outro” pelos judeus palestinenses. Com relação aos coríntios, Paulo é claramente um “outro” e a relação entre eles é de evangelizador e evangelizados.

Entre os fiéis encontramos em Corinto um ainda maior número de “outros”, dotados com diferentes dons carismáticos para a edificação da comunidade. Paulo os elenca entre os agentes pastorais: “apóstolos, profetas, mestres, milagres, carismas de cura, de assistência, de governo, de línguas diversas” (1 Cor 12,28). E esta lista não é exaustiva sequer, se julgamos aqueles enumerados em 1 Cor 12-14. Entre os fiéis encontramos aqueles que são fortes e aqueles que são fracos na fé, diferenças relativas ao gênero e classe sociais, de diversas concepções de moralidade (1 Cor 5-7). É forte também a separação existente entre ricos e pobres na Ceia do Senhor (1 Cor 11,17-22), ditada provavelmente pela distinção de classes entre pessoas libertadas e cidadãos nascidos livres.

Em suma, a comunidade de Corinto, uma comunidade excepcionalmente “enriquecida em tudo, com todo tipo de palavras e conhecimento” (1 Cor 1,5), onde “não faltava nenhum dom” (1 Cor 1,7), era igualmente rica em “facções” e “divisões”. As duas cartas de Paulo vão de encontro à situação de vida concreta desta complexa comunidade da “Igreja de Deus”, “com todos os santos que estão em toda a Acaia” (1 Cor 1,2; 1 Cor 1,1), situada em uma complexa situação sociocultural, religiosa, econômica e política. É aí que Paulo proclama seu evangelho e ministério de reconciliação, como algo recebido e vivido.  

Como se dá a abordagem de Paulo aos “outros” em Corinto

A finalidade principal de Paulo ao escrever aos coríntios é ajudá-los a se relacionar com o diferente dentro da própria comunidade cristã e consigo enquanto evangelizador. Toda menção de “outros” fora da comunidade é primariamente em função disso. Paulo não está oferecendo uma crítica dos judeus ou dos gregos em si mesma, mas ele desafia os cristãos a viver de acordo com o Cristo que eles tinham recebido.  Na primeira carta, Paulo recorda aos coríntios que as facções entre eles acabam por dividir o próprio Cristo, uma vez que todos formam um só corpo com Ele e Nele, em virtude de terem recebido do mesmo batismo o mesmo Espírito (1 Cor 12,13). Ele recorda a eles o papel unificador da Ceia do Senhor a qual, quando se torna uma desculpa para divisão é uma contradição em termos e deixa de ser a Ceia do Senhor (1 Cor 11,17-34). Ele invoca o amor, o dar totalmente lugar ao “outro” (não importa quem), como sendo o coroamento de todos os dons, sem o qual todos os dons são sem sentido (1 Cor 13).  Com respeito àqueles que se autoproclamam fortes e desdenham dos que são fracos (1 Cor 8), Paulo apresenta seu próprio exemplo de “se fazer tudo para todos, para salvar a alguns de alguma forma” (1 Cor 9,15-23).  Cada parte da primeira carta se endereça diretamente a um determinado problema da comunidade. Na segunda carta, embora siga tendo a situação da comunidade em mente, Paulo vai para além destas considerações particulares para identificar o contexto compreensivo no qual deveria ajudar os coríntios a se relacionarem com os outros de uma maneira madura.

A Reconciliação: ministério próprio de Deus (2 Cor 5,11-21)

Para Paulo, o ministério da reconciliação” (2 Cor 5,18-10) é a chave do problema do “outro” na comunidade de Corinto. Reconciliação lida essencialmente com a restauração e a renovação de uma relação rompida. Na segunda carta isso se aplica primariamente à relação entre Paulo e os Coríntios (2 Cor 6,11-13), e secundariamente entre eles e Deus, o iniciador e o modelo de toda reconciliação (2 Cor 5,14-21). Esse ministério é essencialmente o ministério de Deus e sua finalidade é “o mundo” (a humanidade) e, por isso, é universal e inclui a todos e todas. Esse ministério divino tem essencialmente dois aspectos inseparáveis, como os dois lados de uma moeda. Ele acontece primeiramente na pessoa de Cristo e é subsequentemente confiado aos pregadores. Em outras palavras, o ministério divino de reconciliar o mundo a si consiste ao mesmo tempo no que Deus fez através de Cristo e na confiança deste ministério aos fiéis, especialmente aos pregadores. Isso é muito importante e os versículos 18 e 19 enfatizam 2 dois aspectos por meio de uma repetição: “Tudo é obra de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação. Isto é, Deus estava, por meio de Cristo, reconciliando o mundo consigo, não lhe apontando os delitos, e nos confiou a mensagem da reconciliação”.

Paulo está apontando assim que o ministério dele de reconciliação assim como aquele de Cristo é uma continuação do próprio ministério de Deus ou, segundo alguns manuscritos, do evangelho da reconciliação. Essa é a razão pela qual o papel de Paulo no ministério é diretamente visto como o de “embaixador” de Cristo ou “é como se Deus falasse por meio de nós” (v.20).  Ora, todo ministério requer meios ou infraestruturas adequadas para poder ser exercido efetivamente. Quais infraestruturas Deus emprega efetivando o ministério divino ao mesmo tempo em Cristo e naqueles a quem ele confia este ministério? Primeiramente, em Cristo, o primário agente de reconciliação, Deus se tornou completamente um com a humanidade pecadora (“Deus estava em Cristo”, “Aquele que não tinha pecado, Deus o fez pecado para que fôssemos justiça de Deus”. V.21). O ministério da reconciliação foi pessoalmente muito custoso a Deus em Cristo. Ele envolve não considerar as transgressões da humanidade, mas tornar-se reconciliado com a humanidade pecadora, isto é, envolve perdão, restauração, cura e abraço. Deus põe em prática o requerido cancelamento de dívidas do jubileu. A palavra “transgressões” ou “dívidas” (v.21) é uma metáfora financeira também usada na oração do Senhor (“perdoai as nossas dívidas”). O cancelamento das dívidas era uma exigência essencial do ano jubilar (Lv 25,28). Trata-se de uma nova criação, onde o antigo já não existe mais. Tudo é graça, é dom.  Mas isso não acontece sem que nos empenhemos a fundo nesta direção!

Estamos dispostos a nos engajarmos nesta dinâmica de uma renovação total da sociedade e das nossas práticas com respeito à diversidade de “outros” que encontramos dentro e fora da comunidade de fé?  (Segue a segunda parte)

Alfredo Sampaio Costa, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

[1] Teresa Okure, “The Ministry of Reconciliation” (2 Cor 5:14-21): Paul’s Key to the Problem of “the Other” in Corinth, Mission Studies 23.1 (2006) 105-119.

Imagem: Shutterstock

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