Pesquisar
Close this search box.

O mal não me pertence

advanced divider

Clovis Salgado Gontijo

Embora a ética não seja a minha área de estudos, as reflexões éticas de Vladimir Jankélévitch (1903-1985) têm muito a dizer à nossa época. Professor de Filosofia Moral na Sorbonne entre 1951 e 1979, o filósofo francês propõe uma ética original, desafiadora e um tanto inquietante, como destaca Béatrice Berlowitz, no livro-entrevista Em algum lugar do inacabado. Dirigindo-se a Jankélévitch, seu entrevistado e velho mestre, Berlowitz constata: “os seus livros sobre moral pulverizam os edifícios da moral. Cada capítulo do Tratado das Virtudes constitui uma denúncia da permanência, da instalação na constância e se conclui com uma apologia do homem sem provisão”[1].

É justamente a ausência de apoios na vida moral, reconhecida e reiterada por Jankélévitch ao longo de sua obra, o ponto pertinente à atualidade que gostaria de ressaltar neste texto. Segundo o filósofo, o nosso “estado” moral é sempre periclitante. As boas ações que já praticamos em nada asseguram que continuaremos a trilhar o “caminho do bem”. Nas palavras do pensador, registradas nesse mesmo capítulo da entrevista:

A existência moral deixa o homem num estado de perfeita nudez; a sua liberdade é desarmada, vulnerável e não pode se beneficiar de nenhuma ajuda exterior, de nenhuma prolongação. É proibido viver de rendas ou fundado no próprio patrimônio, é proibido acomodar-se ou somente lucrar do movimento adquirido.[2]

Como o som, cujas vibrações se esvaem inexoravelmente com o passar dos segundos, a boa ação não se conserva nem se prolonga no interior do sujeito. Ao contrário do que almejamos, “em moral, o caminho ganho é quase instantaneamente perdido outra vez”[3]. É como graça fugidia, ocasião inapreensível, que alcança o seu valor mais precioso quando não nos comprazemos ou enaltecemos com ela. O agir virtuoso não só impede o armazenamento e o prolongamento, mas também o desenvolvimento e o aprimoramento. Como sustenta Jankélévitch, o progresso escalar se aplica às atividades e aos ofícios técnicos, mas não à experiência ética. Há algo de angustiante ao nos descobrirmos “sem arrimo” (“sin arrimo[4]), para empregar a expressão de São João da Cruz, especialmente num âmbito que nos convoca continuamente. Segundo o filósofo, à diferença das fruições estéticas e das práticas religiosas, mais intermitentes, o dever ético permanece uma exigência ininterrupta ao longo de toda a vida humana.[5]

Voltando-nos ao Brasil dos últimos anos, a perspectiva jankélévitchiana contrasta nitidamente com a classificação, típica ao bolsonarismo, de alguns indivíduos como “cidadãos de bem”. Sou pai de família, trabalhador, frequento o culto ou a missa semanalmente, e isso me torna imune ao mal ou, ao menos, às ações que meu grupo define como más. Afinal, a denominação “cidadãos de bem” remete ao título da revista estadunidense The Good Citizen, que, nas primeiras décadas do século XX, veiculava, em apoio ao movimento Ku Klux Klan, conteúdos anticatólicos, racistas e antissemitas. Portanto, em continuidade com essa pérfida lógica, o “cidadão de bem” brasileiro poderia levantar a bandeira contra a corrupção, mas, ainda assim, defender a aplicação da tortura para aquele que ousou – ou ainda ouse – ameaçar o sistema com propostas “comunistas”. Enquanto a prática do mal não me atinge como “cidadão de bem”, ela se localiza claramente naquele que vejo, sob óptica maniqueísta, como em oposição a mim: além do intelectual pseudo-comunista, a pessoa em situação de rua, o excluído da sociedade produtiva, o indivíduo que não partilha das minhas crenças cristãs. E, assim como o “cidadão de bem” permanece inabalavelmente incólume, o outro de moral condenável se congela como mau elemento, sem qualquer possibilidade de conversão. Nesse raciocínio, não resta alternativa senão endossar a repetida asserção: “Bandido bom é bandido morto”…

Contudo, a classificação bolsonarista logo se revela uma espécie de álibi, capaz de ocultar não só as infrações clandestinamente admitidas, mas também aquelas expressamente condenadas pelo grupo, como a própria corrupção. Portanto, numa realidade em permanente devir e com renovados desafios, declarar-me um “cidadão de bem” seria, na verdade, algo tão ridículo e, até mesmo, tão hipócrita quanto “se me descobrisse a cada amanhã um pouco mais inocente, a cada mês um pouco mais puro, hoje mais que ontem e bem menos que amanhã”[6].

Por outro lado, não devemos nos iludir que tal posição simplista, “reconfortante” e, em muitos casos, dissimulada, seja algo exclusivo à extrema-direita. Recentemente, após o atentado a Donald Trump em comício na Pensilvânia, surgiram comentários, em veículos brasileiros mais alinhados à esquerda, reforçando a suspeita de que o atirador era republicano, como se um democrata não pudesse cometer atos violentos. Por sua vez, Gleise Hoffmann, avaliando a repercussão em meios bolsonaristas do atentado em questão, afirmou: “A violência política sempre foi uma prática da extrema-direita, não apenas contra seus adversários, mas contra a democracia”[7]. Uma afirmação que, apresentada sem maior aprofundamento nas redes sociais, correria o risco de ser interpretada como uma tentativa de se depositar o mal num campo ao qual não se pertence.

Ainda no que concerne ao registro associado à esquerda, o discurso político em prol da dignidade e dos direitos das minorias não assegura um comportamento público ou privado condizente. Como também mostra Jankélévitch, há uma decisiva diferença entre as nossas relações com um outro universal e impessoal, por um lado, e as nossas relações com um “tu” concreto, por outro. Prova disso é o escândalo desvelado nas últimas semanas, envolvendo o ex-presidente argentino Alberto Fernández, de filiação peronista. Enquanto o seu governo contava com um ministério de Mulheres, Gêneros e Diversidade, o político, de acordo com as chocantes denúncias e imagens, agredia com frequência, psicológica e fisicamente, sua ex-mulher Fabiola Yáñez. Se confirmadas as denúncias a Fernández, que se autoproclamou “o primeiro feminista”[8] do país em discurso dirigido às mulheres em 2021, a ele cairão como uma luva as palavras com as quais Jankélévitch sintetiza a filosofia moral do mestre Henri Bergson: “Não escute o que eles dizem, olhe o que eles fazem”[9]

Esse episódio nos confirma a hipótese jankélévitchiana da precariedade da vida moral, em que nem o trabalho, nem a filiação política, nem a pertença religiosa nos oferecem qualquer garantia. O mal pode se realizar a partir de nós a qualquer instante, especialmente porque, cabe completar, todos partilhamos, numa mesma época e cultura, um mesmo “repertório” de atos de violência e de preconceitos arraigados. Assim observou, com lucidez, Cristina Kirchner, ao comentar o escândalo envolvendo seu ex-aliado: “a misoginia, o machismo e a hipocrisia, pilares nos quais se assenta a violência verbal ou física contra a mulher, não têm bandeira partidária e atravessam a sociedade em todos os seus estratos”[10]. Desse modo, compreendemos como, aqui no Brasil, um político aparentemente avesso às truculências do bolsonarismo foi capaz de ridicularizar o filho do ex-presidente por sua suposta homossexualidade.

Apesar de radical, a ética jankélévitchiana nos ensina que é mais honesto não ter “provisões”, como diz Berlowitz, crer que começamos sempre do zero na vida moral. O bem nos escapa, o mal nos espreita, e essa dinâmica abraça indiscriminadamente todos os humanos. Se nos reconhecemos frágeis, temos mais condições de ser vigilantes, recusando o que não faz bem ao outro e o que inviabiliza o projeto de mundo que sonhamos.

Clovis Salgado Gontijo é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

 

Imagem: Shutterstock

[1] BERLOWITZ, Béatrice, in: JANKÉLÉVITCH, Vladimir; BERLOWITZ, Béatrice. Em algum lugar do inacabado. Tradução: Clovis Salgado Gontijo. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2021. p. 123.

[2] JANKÉLÉVITCH, V. in: Ibid., p. 128.

[3] JANKÉLÉVITCH, V. in: Ibid., p. 127.

[4] JUAN DE LA CRUZ, San. Glosa del mismo [autor]. In: JUAN DE LA CRUZ, San. Obras completas. Séptima edición preparada por Eulogio Pacho. Burgos: Monte Carmelo, 2000. p. 77.

[5] JANKÉLÉVITCH, V. Curso de filosofia moral: notas tomadas na Universidade Livre de Bruxelas 1962-1963. Texto estabelecido, anotado e prefaciado por Françoise Schwab. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. p. 24-25.

[6] JANKÉLÉVITCH, V. in: JANKÉLÉVITCH, V.; BERLOWITZ, B., op. cit, p. 126.

[7] “Violência política sempre foi uma prática da extrema-direita”, diz Gleisi após suposto atentado contra Trump. Brasil 247, 15 de julho de 2024. Disponível em: https://www.brasil247.com/brasil/violencia-politica-sempre-foi-uma-pratica-da-extrema-direita-diz-gleisi-apos-suposto-atentado-contra-trump Acesso em: 17 de agosto de 2024.

[8] LUCENA, André. De presidente improvável a agressor, Alberto Fernández vive o apagar do seu horizonte político. Carta Capital, 17 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/mundo/de-presidente-improvavel-a-agressor-alberto-fernandez-vive-o-apagar-do-seu-horizonte-politico/ Acesso em: 17 de agosto de 2024.

[9] SCHWAB, Françoise. Vladimir Jankélévitch: le charme irrésistible du je-ne-sais-quoi. Paris: Albin Michel, 2023. p. 87 (tradução nossa).

[10] Política. Cristina Kirchner ahora dice que Alberto Fernández no fue buen presidente y que las fotos de Fabiola Yáñez muestran los “aspectos más oscuros de la condición humana”. Clarín, 9 de agosto de 2024. Disponível em: https://www.clarin.com/politica/cristina-kirchner-ahora-dice-alberto-fernandez-buen-presidente-fotos-fabiola-yanez-muestran-aspectos-oscuros-condicion-humana_0_vCMIe5ONRZ.html#google_vignette Acesso em: 17 de agosto de 2024 (tradução nossa).

...