Alfredo Sampaio Costa, SJ
Seguimos nossa reflexão sobre o ministério da reconciliação a partir da experiência de Paulo com a comunidade de Corinto. Na primeira parte desta reflexão, destacávamos Corinto como expressão da diversidade cultural, ideológica que caracteriza nossa sociedade atual e como isso afetou o ministério de Paulo ao ter que se defrontar com vários tipos de “outro” na sua missão evangelizadora[1].
A RECONCILIAÇÃO, UMA “NOVA CRIAÇÃO”
O ministério próprio de Deus, fazer novas todas as criaturas, Paulo se sente chamado a assumi-lo como embaixador. A experiência de ser ministro de uma reconstrução da pessoa e ao mesmo tempo da sociedade dividida exige um empenho total e uma coragem de enfrentar tudo o que opera para impedir uma existência reconciliada com o Senhor.
A imagem de uma “nova criação” que vai sendo gerada no nosso ministério ao enfrentarmos as oposições e divisões nos recorda que o processo de conversão, de reaproximação com os irmãos, com o Senhor e com as criaturas é sem-fim. Está sempre em andamento, uma vez que, na visão de Paulo, a criação inteira ainda não está totalmente sujeita a Cristo ou reconciliada a Deus, como escreve Paulo aos romanos: “A humanidade foi submetida ao fracasso, não por sua vontade, mas por imposição de outro; mas com a esperança de que essa humanidade se emancipará da escravidão da corrupção, para obter a liberdade gloriosa dos filhos de Deus. Sabemos que até agora a humanidade inteira geme com dores de parto” (Rm 8, 21-25).
A primeira carta aos Coríntios, na mesma linha, aponta um desenvolvimento até que a realidade da reconciliação possa atingir a tudo e a todos. Paulo utiliza a imagem da sujeição (submetimento) de todas as coisas a Cristo. A linguagem de sujeição aponta para as forças negativas que geram divisão e causam morte. Já a linguagem da reconciliação comunica a vitória sobre estas forças opressoras. Paulo contrasta as duas em pares como a administração da morte/Espírito e a administração da condenação/justificação (2 Cor 3,1-7). Enquanto os seres humanos e a criação são reconciliados com Deus por Deus e através de Cristo, todas as forças opostas, incluindo a morte irão eventualmente serem tornadas incapazes de ferir a criação de Deus. Quando a sujeição/reconciliação for completada, Jesus irá entregar a criação restaurada a Deus para que Deus seja tudo em todos (1 Cor 15,28).
O Ministério divino da reconciliação, confiado a Paulo
Paulo participa no ministério da reconciliação inicialmente aceitando-o pessoalmente, isto é, permitindo a si mesmo ser capturado por Deus em Cristo (Fl 3,12: “eu continuo para alcançá-lo, como Cristo já me alcançou”). E, em seguida, tornando-se seu embaixador/ministro seja aos judeus seja aos gregos (2 Cor 5,20-7,1; 1 Cor 9,19), que representam “todos os povos” (a humanidade). Se requer do embaixador que ele esteja constantemente em contato com o país que ele representa e comunique as visões do seu país ao país que os hospeda. É seu dever também promover o entendimento mútuo entre eles. São mediadores entre as duas partes. Como embaixador de Cristo, Paulo e seus companheiros de trabalho operam o ministério da reconciliação que lhes foi confiado por Deus, sem desanimar ao ter que enfrentar desafios assustadores (2 Cor 4,1-2;5; 11. 23-33).
Como embaixador, Paulo emprega o mesmo método persuasivo utilizado por Deus por meio de Cristo: “Como se Cristo falasse a vocês por meio de nós” (2 Cor 5,20). Esse método implica não colocar obstáculos no caminho do evangelho ou daqueles a quem o evangelho é pregado (1 Cor 9,12; 2 Cor 6,3). Às vezes pode requerer desafiar ou não elogiar os coríntios pelo seu comportamento imaturo e, em outras ocasiões, elogiá-los (1 Cor 11,2.17). Na segunda carta, o conteúdo da persuasão mencionado em 2 Cor 5,20-6,1 é articulado em 2 Cor 6,14-7,1. Paulo implora aos coríntios que não sejam restritos nas suas afeições para com ele e que abram seus corações a ele, assim como ele o fez a eles (2 Cor 6,11-13).
A participação no ministério da reconciliação foi muito exigente a Paulo pessoalmente, assim como o foi a Cristo. Ele teve que enfrentar todo tipo de dificuldades pelo bem do Evangelho: “Em tudo nos recomendamos como ministros de Deus: com muita paciência, em meio a tribulações, penúrias, angústias, açoites, prisões, motins, fadigas, vigílias e jejuns” (2 Cor 6,4-5) e permanecer fiel em meio a tudo isso “com integridade, conhecimento, paciência e bondade; com Espírito Santo, amor não fingido, mensagem autêntica e força de Deus, usando as armas da justiça à direita e à esquerda. Na honra e na desonra, na boa e na má fama. Como impostores que dizem a verdade, como desconhecimentos que são bem conhecidos, como mortos e estamos vivos, como punidos, mas não executados, como tristes, mas sempre alegre, como pobres que enriquecem muitos, como necessitados que possuem tudo” (2 Cor 6, 6-7).
Sujeito sempre a incompreensões, invejas e perseguições, seu ministério sempre foi um livro aberto que todos podiam ler, uma vida vivida com integridade espiritual e retidão (“para vós, coríntios, minha boca se abre com franqueza, meu coração está dilatado” (2 Cor 6,11).
Os Coríntios: chamados a se reconciliarem com Deus
Na sua primeira carta, Paulo tinha feito um apelo aos coríntios “em nome de N.S. Jesus Cristo” a “evitar dissensões” e, ao invés disso, “serem unidos na mesma mente e julgamento” (1 Cor 1,10). Na segunda carta, Paulo apela aos coríntios que se reconciliem com Deus (2 Cor 5,20). Sem essa aceitação pessoal e sem viver a reconciliação oferecida por Deus em Cristo, eles seriam incapazes de se relacionarem com os outros entre eles e com Paulo. Uma vez que eles aceitam a reconciliação com Deus administrada a eles por meio de Paulo e seus co-embaixadores de Cristo, eles serão capacitados a administrar o mesmo aos outros. Uma vez que Cristo não pode mais ser pensado em termos humanos (de raça, sexo, classe, rico ou pobre, fraco ou forte), os coríntios que estão “em Cristo” deveriam igualmente ver a si mesmos como novas criaturas e conceder o mesmo aos outros. Entendido deste modo, o ministério da reconciliação aparece como chave para nos relacionarmos com “os outros” que os coríntios ou qualquer outra comunidade podem identificar no interior e ao exterior do seu grupo. Ele não deixa espaço para alimentar qualquer tipo de atividade que causa divisão nem nutra uma atitude prejudicial com relação aos demais.
Desafios do ministério da reconciliação para hoje
Como ler essa passagem de 2 Cor 5,11-21 no nosso contexto como recipientes e ministros da reconciliação de Deus no mundo? Um primeiro caminho seria que cada um de nós fizesse um balanço de como tem assumido na sua vida esse ministério, como Paulo o fez.
A aceitação feita por Paulo levou-o a cruzar as barreiras da superioridade racial (“hebreu nascido de hebreus”) e de sexo (“não há mais homem nem mulher”). Antes um fariseu de fariseus, ele teve que aprender a se associar proximamente com mulheres, especialmente em Filipos com Lídia, e aceitá-las como colaboradoras no seu ministério. Paulo ficou sabendo, por meio daqueles da família de Cloé, que haviam discórdias entre os coríntios (1 Cor 1,11) e foi esse motivo que desencadeou a correspondência com a comunidade. O fato de ter que romper as fronteiras aconteceu fisicamente na sua pessoa e formou o especial caráter da sua conversão, sua transferência em Cristo onde ele encontrou e abraçou “o outro” como irmão e irmã. Este é um grande desafio para nós que nos lembra que ninguém pode ser ministro de reconciliação sem se encarnar vivencialmente com as pessoas a quem queremos servir.
Um segundo tipo de atividade seria convidar outras pessoas a se engajar nesta reflexão para elas mesmas assim como Paulo fez com os coríntios. Até que ponto somos capazes de reconhecer a multiplicidade de “outros” que existem no contexto onde atuamos, dentro e fora da comunidade e como nos relacionamos com eles? Levamos em consideração os seus diferentes contextos e histórias? Como relacionamos o contexto local com o contexto mais global? Que papel e peso as questões de raça, nacionalidade, religião, estilo de vida jogam ao nomearmos os outros? Que preconceitos carregamos ao nos relacionarmos com os outros?
Um desafio final
Ouvindo Paulo em diferentes partes da carta, fica claro que ele mesmo não conseguiu resolver inteiramente o problema do “outro” sequer para si mesmo. Isso aparece claramente na sua atitude para com os “outros pregadores” e para com as mulheres da comunidade eclesial. Embora reais, essas contradições não anulam a efetividade do ministério divino da reconciliação. Paulo mesmo era muito consciente de que ele ainda não tinha se tornado perfeito (Fl 3,12-14: “Não que eu já tenha conseguido nem que já seja perfeito: eu continuo para alcança-lo, como Cristo já me alcançou”). Por essa razão ele se engaja na corrida assim como todos aqueles que correm para alcançar o prêmio: “Não sabeis que no estádio correm todos os corredores, mas só um ganha o prêmio? Correi, portanto, para consegui-lo. Os que competem se abstêm de tudo; e o fazem para ganhar uma coroa corruptível, nós uma incorruptível” (1 Cor 9,24-25).
Provavelmente, ao considerar nossa realidade, iremos encontrar também contradições similares em nossas comunidades de fé que nos exigirão recomeçar sempre nosso zelo pelo ministério de reconciliação. O mesmo Deus que em Cristo reconciliou o mundo consigo mesmo, que chamou Paulo e seus colaboradores para que os coríntios se reconciliassem com Deus, continua a chamar por meio de diversos agentes e de modos diversos a que sejamos reconciliados com Deus. A consciência desses desafios nos compromete inteiramente com esse ministério onde, com integridade de coração e uma vida vivida em Cristo, continuemos a ser testemunhas para ele na luz do Espírito.
Pe. Alfredo Sampaio Costa, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE
[1] Como a primeira parte do artigo publicada anteriormente, nossas reflexões se baseiam no trabalho de TERESA OKURE, “The Ministry of Reconciliation” (2 Cor 5:14-21): Paul’s Key to the Problem of “the Other” in Corinth, Mission Studies 23.1 (2006) 105-119, o qual comentamos oportunamente.