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A memória do “futuro”

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Geraldo Luiz De Mori SJ

Eis que faço uma coisa nova; agora está saindo à luz; porventura não a percebeis?” (Is 43,19a)

 

Antônio Vieira escreveu na segunda metade do século XVII a obra História do futuro, publicada postumamente em 1718. Trata-se da primeira obra utópica escrita em língua portuguesa. Nela, o grande escritor jesuíta retomou o mito milenarista do Quinto Império e o identificou com o império cristão português. Chama a atenção no título de sua obra a associação que ele faz entre história e futuro, o que parece uma incongruência, pois a história, em geral, refere-se ao passado. A mesma reflexão pode ser feita para o que aqui é proposto, que associa memória e futuro, que também parece uma incongruência, pois memória diz respeito a algo que se passou. O que a associação entre memória e futuro pode iluminar numa releitura da situação do Brasil após as eleições municipais de 2024?

Parte das análises sobre os resultados do pleito municipal de 2024 recorre aos dois principais personagens da política brasileira na atualidade: o ex-presidente e os partidos e grupos que ele representa; o atual presidente e os ideais que ele e os grupos que o apoiam encarnam. A referência a esses dois personagens é para dizer quem ganhou ou perdeu. Sem ceder à polarização representada por esse tipo de leitura, que é mais superficial e simplista, alguns analistas mostram que quem de fato saiu vitorioso nas eleições de 2024 foram os políticos identificados com o “Centrão”. Outros, mais pessimistas, veem o campo social e político nacional cada vez mais tendendo ao conservadorismo e inclinado ideologicamente à direita. As leituras mais críticas e progressistas do atual panorama político nacional, ora trazem argumentos que parecem não levar em conta o que de fato está acontecendo, ora agudizam a polarização, ora se agarram a um passado idealizado, no qual sua narrativa e seus argumentos ganhavam mais adesão e tinham mais hegemonia.

O que acontece nas análises da atual situação política do Brasil, de certa forma, também se repete nas leituras da situação religiosa e, mais especificamente, no que diz respeito ao catolicismo, à situação da Igreja católica. De fato, diante do crescimento ainda importante do mundo evangélico, a Igreja parece sem uma reação capaz de frear tal tendência, conhecendo cada vez mais o envelhecimento dos fiéis que compõem suas comunidades e perdendo a capacidade de propor iniciativas que tornem atraentes sua mensagem e seu modo de ser e agir para as novas gerações. Além disso, no seio da própria Igreja, os grupos que encarnaram durante várias décadas uma recepção criativa, profética e corajosa do Concílio Vaticano II, parecem perder seu poder de atração frente a grupos cujo discurso e cujas práticas dão a impressão de estarem muito distantes do que foi proposto e assumido pela renovação conciliar, assumindo práticas e discursos religiosos tidos como devocionistas, quando não mágicos, aparentemente muito distantes da fé cristã.

Essas leituras da situação social e política brasileira provocam certa paralisia em muitas forças tidas como progressistas no seio da sociedade, paralisia que também parece atingir grupos e movimentos que durante décadas deram relevância ao catolicismo num país em forte mutação. Essa paralisia tende em muitos discursos a tornar-se saudosismo, que, mais que despertar interesse e adesão nas novas gerações, é visto como um discurso de outro tempo e de outro mundo, sem plausibilidade para o presente, além de ser identificado como pertencente a uma ideologia de esquerda ou marxista. Certamente a “narrativa” que está por detrás das leituras que são feitas nos novos discursos que ganharam hegemonia na sociedade e nas Igrejas, é ela também fortemente ideológica, e, sob muitos pontos de vista, mais perversa do que qualquer desvio que tenham tido os discursos e práticas que anteriormente despertavam mais interesse e adesão das pessoas, pois se vê a si mesma como a única verdadeira e nega ao outro qualquer tipo de verdade.

Por que associar memória e futuro, como outrora Vieira associara história e futuro? No caso do grande escritor jesuíta do século XVII, tratava-se de relançar a narrativa milenarista, presente no livro de Daniel e no Apocalipse de João, com funções políticas e religiosas. Segundo muitos historiadores desse tipo de narrativa, a ela se deve, em parte, a interpretação da história não só como narrativa de algo passado, mas como imaginação que motiva para a ação no presente e acende a chama da esperança no futuro. Boa parte da filosofia da história, que conheceu grande florescimento nos séculos XIX e XX, em grande parte, tem sua gênese no milenarismo judaico e cristão. Por isso, quando Johan Baptist Metz, recorreu à categoria “memória revolucionária” para referir-se às leituras que a fé cristã fez da morte e da ressurreição de Jesus, ele se baseava na ideia de que a memória tem futuro, não se reduzindo a um monte de recordações sepultadas num passado que não volta mais, ou a um saudosismo paralisante, que não estimula a imaginação e não produz ação. No caso do Crucificado-Ressuscitado, recordar-se de seu mistério pascal significa dar continuidade ao que ele inaugurou, ou seja, tornar presente o reino de Deus no mundo, com gestos que o fazem advir: curar enfermos, expulsar demônios, praticar uma acolhida sem reservas do outro, sobretudo dos mais vulneráveis.

O mesmo Johan Baptist Metz, na obra em que fala da “memória revolucionária”, propondo uma “apologia da narração”, mostra o poder da arte de narrar que, segundo ele, também se encontra na tradição judaico-cristã. Ele evoca a história de um velho rabino, paralítico, que ao comentar as narrações da história de seu povo, de tal modo fica tomado pelo que narra que começa a caminhar. Esse “milagre” da narração tem sido evocado de muitas formas na teologia contemporânea. Mas nem sempre tem “levantado” grupos e propostas de vida social, política e mesmo modos de se viver a fé de uma paralisia na qual certo excesso de saudosismo ou de “diagnóstico” os tem condenado. De fato, muitas comemorações de elementos importantíssimos da história recente do país ou da história da vida eclesial no período pós-conciliar, objeto do negacionismo militante de certos grupos de direita ou da suspeita de sua qualidade de humanidade e de testemunho cristão, da parte dos que se apresentam como o novo magistério pelo qual a verdade da fé é defendida dos erros, mais que levantar da “paralisia”, parecem condená-la a perpetuar-se.

O que poderia “acender” a brasa que ainda fumega de uma memória que pode produzir futuro? No mundo bíblico, que deu origem à fé cristã, o apelo a não esquecer dos benefícios recebidos é uma constante. Sob muitos pontos de vista, toda a fé bíblica é um contínuo ato de fazer memória, e esse ato é o que alimenta o presente e o futuro. O mesmo se pode dizer do ato de memória por excelência do qual nasce a fé cristã: o do memorial da Páscoa do Cristo. Mais que fixar-se diante de um passado trágico, que evoca a morte do Senhor, é imbuído de um futuro, pois anuncia a ressurreição do Crucificado. A fé cristã vive dessa memória que continua produzindo futuro. É ela que deve inspirar os discursos que, como na narrativa de Madalena no sepulcro, parecem apegar-se a um corpo morto. A grande força cristã é descobrir que a memória da paixão é força de ressurreição, ou seja, leva a sair da paralisia de uma memória que se contenta em se autocelebrar, pois identifica-se como a que melhor compreendeu o que é o cristianismo.

O resultado das eleições, como a atual situação da Igreja, mais que paralisar tem que chamar à imaginação e à ação. Certamente o ato de fazer memória revelará que o que se fez foi a resposta exigida pelo contexto ou pela leitura espiritual da fé ao que então lhe era exigido. A beleza do que foi vivido merece, sim, ser recordada, como também o que foi aprendido. Mas essa memória deve ser parteira de um futuro, ou seja, deve fazer nascer o novo, gerando novas respostas à situação nova em que se encontra a história e a fé. Mais do que nunca, talvez, ela deve despertar a imaginação e a criatividade para propor o que cada geração deve recriar com o aprendido do passado e que faz “novas todas as coisas”.

Geraldo Luiz De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

 

Foto: Shutterstock

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