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Atitude básica para viver a Quaresma: um olhar de fé sobre a realidade

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Alfredo Sampaio Costa SJ

Nos Exercícios espirituais, a contemplação dos mistérios da Paixão tem certamente uma importância extrema. R. F. Harvanek afirma que os Exercícios Espirituais querem levar a pessoa a revestir-se de Cristo. Esta ênfase pascal o leva a afirmar que os “Exercícios progridem na direção do seu ápice na terceira e na quarta semanas (i.é, na contemplação do Mistério Pascal!)” .

O itinerário quaresmal nos levará a considerarmos, de forma concreta, como podemos viver unidos a Cristo (hoje) em situações de dor e sofrimento. Ao fazer os Exercícios espirituais completos (em qualquer de suas modalidades, fechado (“corridos” ou “em etapas”) ou “na vida corrente” (os populares EVC), notamos como a maior parte das energias e do interesse daquele que faz o retiro e até mesmo dos orientadores centra-se nas duas primeiras etapas (“Semanas”), onde as contemplações da vida de Cristo são prazerosas e repletas de ensinamentos e repercussões afetivas na pessoa.

A tentação é, assim, passar rapidamente pelas duas últimas etapas (Terceira e Quarta Semanas), particularmente nos retiros “fechados”, conferindo-lhes apenas o caráter de confirmação da descoberta da vontade de Deus (realizada na Eleição).

É necessário devolver a estas etapas finais sua significação própria dentro da contemplação da vida de Jesus como critério de discernimento para quem se propõe integrar a vida com a vontade divina. A própria dinâmica dos Evangelhos nos ajuda nisso. Dão testemunho de como o mistério pascal é central na vida de Jesus. Tudo o que veio antes, por mais importante que seja, faz parte da “subida para Jerusalém”. Lucas, particularmente, segue essa estrutura no seu relato. Será lá, em Jerusalém, onde se completará a entrega de Jesus e a sua radical dedicação ao Reino de Deus.

Ao acompanhar Jesus na sua Paixão, seguindo São Paulo quando afirma que “o que quero é tomar parte em seus sofrimentos e chegar a ser como ele na morte, com a esperança de alcançar a ressurreição dos mortos” (Fl 3, 10-11), confirmamos nosso desejo de nos configurarmos a Cristo na sua entrega de vida por amor.

Neste momento de dor e sofrimento, de impotência e incerteza, convergem as duas grandes linhas de força que constituem a estrutura dos Exercícios: a da Primeira etapa, experiência da condição do pecador e da misericórdia de Jesus que morre por meus pecados, e a da Segunda etapa, onde se busca conhecer, amar e seguir Jesus mais de perto. Muito além da compaixão sensível que acompanha o Cristo sofredor na oração piedosa, é uma confirmação da eleição em que o exercitante compreende e interioriza a sua decisão de seguir Jesus até mesmo na radicalidade de dar tudo por causa do Reino.

Ao rezar os Mistérios da Paixão e Morte do Senhor, de forma encarnada e realista, o Amor alcança sua vivência máxima (Cf EE 167), levando-nos a comprovarmos a qualidade do amor que afirmamos ter, até entregarmos a própria vida para que os outros (e não nós mesmos) tenham vida. Nesse tempo de pandemia, onde enfrentamos atitudes negacionistas que impedem uma solidariedade efetiva com os que estão sofrendo, é preciso nos apropriarmos das moções de Jesus na agonia do horto, tomarmos consciência de que será sempre preciso confrontar na vida nosso próprio projeto (nossa vontade) com o projeto do Pai (sua vontade, isto é, seu Reino).

Cada cena da Paixão contemplada nesta perspectiva adquirirá força e iluminará nossa existência, fazendo crescer o nosso amor por Cristo.

Toda essa força dinamizadora não está confinada somente dentro dos limites dos Exercícios formalmente vividos. Sempre me chamou a atenção os frutos alcançados ao aplicar as linhas de força dos EE ao dinamismo do ano litúrgico. Por isso procuramos nessas nossas reflexões uma aplicação do que seria a vivência da graça mais própria para a Terceira Semana ao período litúrgico da Quaresma.

Atitude básica para viver a Quaresma (Enfrentar os sofrimentos com olhar de fé):

Se quisermos identificar a atitude fundamental para viver esse tempo litúrgico, podemos busca-la na expressão com que Inácio finaliza o pequeno tratado sobre a Reforma de Vida, que conclui o processo da Eleição: “Pois pense cada um que tanto mais se aproveitará em todas as coisas espirituais quanto mais sair do seu próprio amor, querer e interesse” (EE 189). Tomada do livro “Imitação de Cristo”, Inácio a utiliza também em EE 344. Nesta frase se poderia resumir, desde um olhar retrospectivo, tudo o que o exercitante foi vivendo desde o começo dos EE até esse preciso instante. Este “sair de si” que já se iniciou desde o Princípio e Fundamento, segue se desenvolvendo na meditação dos pecados e na experiência da Segunda Semana em chave de chamado-resposta. E dentro dela, o momento da eleição (descoberta da vontade de Deus) surgirá como o momento cume da aceitação da vontade de Deus sobre a disposição da própria vida. E em um olhar prospectivo, o “sair de si” será a melhor disposição para entrar na Paixão do Senhor, onde irá contemplar a expressão mais sublime do que significa sair de si – de Jesus – para se submeter plenamente à vontade de seu Pai.

Se há uma atitude básica para vivermos a Quaresma, é exatamente a de “sairmos de nós mesmos para nos voltarmos mais para Deus e para os outros”. Aliás, é esse o sentido da “conversão”. Esses últimos dois anos têm nos brindado com inúmeras oportunidades para avançarmos nesse “sair de nosso amor-próprio e interesse”. Certamente é um desafio enorme. Só a contemplação de Jesus na Paixão poderá nos encorajar a pedir essa graça.

Somos chamados a repetir em nós a experiência da comunhão que Jesus viveu com o Pai, revivendo essa experiência e atualizando-a em nós e no Corpo de Cristo que é a Igreja pelo amor de identificação no mistério da sua humanidade. Encontramo-nos aqui, portanto, para usar uma linguagem tradicional da experiência mística, no centro da via unitiva. De fato, há uma presença constante de elementos unitivos no texto dos Exercícios: “Dor com Cristo doloroso, angústia com Cristo angustiado, pena interna de tanto sofrimento que Cristo passou por mim “ (EE 203). Contempla-se o mistério da humanidade sofrida de Jesus, não de fora, mas pelo interior dos seus sentimentos. É toda a humanidade sofredora que geme, e somos chamados a escutar e socorrer seus apelos.

Muito além da imitação de um modelo, o que acontece é a participação real no mistério da Paixão de Deus pela comunhão com a humanidade de Jesus. Quem contempla não é um expectador passivo e distante, mas alguém que, movido pela conaturalidade do amor, toma também sobre si a parte que lhe toca no mistério de Cristo sofredor (Cl 1,24). O exercitante percebe que seguir Jesus Cristo implica uma união de destino em que a cruz surge como possibilidade resultante da fidelidade a um tipo de viver.

Ao rezar os mistérios da Paixão, Inácio propõe algumas chaves de leitura: “Considerar o que Cristo N.S. padece na humanidade” (EE 195), “considerar como a divindade se esconde” (EE 196) e “considerar como padece tudo isso por meus pecados” (EE 197). São três passos em que o verbo “considerar” significa um olhar do coração que se deixa impressionar pela imagem que contempla, aprofundando afetivamente o sentido último que se oculta sob a superfície dos acontecimentos para se deixar afetar por ele. No final, a pessoa se experimenta implicada pessoalmente na Paixão e ao mesmo tempo objeto de predileção, causa e destinatário de tudo o que se passa ali.

A “sofrida passividade” da 3ª Semana:

Talvez um dos efeitos mais devastadores da pandemia consista em fazer-nos cair na conta da nossa fragilidade e impotência. Desconcerta-nos na pandemia exatamente o pouco que podemos fazer. Acostumados a sermos protagonistas e muito seguros de nós mesmos, forçosamente estamos aprendendo a sermos menos presunçosos e que precisamos uns dos outros para poder suportar as provações. Estamos aprendendo, com o mesmo terror e pavor dos apóstolos, o que realmente significa tomar a decisão de “subir a Jerusalém”. Contemplando Jesus, vislumbramos qual pode ser o preço da fidelidade ao Seu seguimento.

Inácio apresenta a Paixão de um modo singular, característico. Jesus aparece como sendo levado de um lado para outro, já a partir do mistério do horto: uma febril atividade rodeia a Jesus no caminho da Cruz. Este “humilde Senhor” (EE. 291) é o sujeito gramatical de um verbo passivo: “é levado a Anás”; os outros é que são ativos, traçando implacavelmente o caminho que conduz à Cruz. O Cristo dos Evangelhos é mais ativo durante a Paixão que o Cristo da Paixão de Inácio. Toda a iniciativa, tanto de atos como de palavras, corresponde aos “inimigos”, que a divindade poderia muito bem “destruir… e não o faz” (EE. 196). A onipotência divina se revela na impotência humana.

Que graça poderíamos pedir ao Senhor ao rezar em tempos de incertezas?

A petição que Inácio propõe nos Exercícios ganha uma enorme atualidade na situação atual: pedir “Dor com Cristo doloroso, quebranto com Cristo quebrantado, pena interna de tanta pena que Cristo passou por mim” (EE 203). Se essa linguagem do tempo de Santo Inácio nos causa dificuldades, podemos atualizá-la para “pedir compaixão”, “solidariedade”, “comprometimento afetivo e efetivo” com todos que sofrem. Quando o caminho do seguimento de Cristo vai se estreitando cada vez mais, nós só poderemos percorrê-lo intimamente unidos a Ele, se entramos definitivamente na “via unitiva” onde o seguimento vai se convertendo cada vez mais em imitação-identificação com Cristo.

Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

1. R. F. HARVANEK, “El Misterio Pascual y los Ejercicios Espirituales”, in AA.VV., Los Ejercicios de San Ignacio a la luz del Vaticano II, BAC, Madrid 1968, 389.

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