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A mística e o sagrado no cinema de Andrei Tarkovski

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Graziela Cruz

“Fiquei profundamente perturbado”, “o filme não me saiu da cabeça por vários dias”, “não sei o que há no filme que mexeu tanto comigo”. Por várias vezes, ao conversar com alguém sobre os filmes do diretor russo Andrei Tarkovski (1932-1986), ouvi expressões como essas. O cinema de Tarkovski é, de fato, uma experiência estética que pode ser definida como poética ou espiritual. Que toca de uma maneira profunda a quem se dispõe a mergulhar em seu universo fílmico e a ser apreendido por sua “intangibilidade silenciosa”, para citar uma expressão do próprio cineasta ao se referir à essência de seus filmes.

A mística e a experiência religiosa de Tarkovski são evidentes em suas obras e transbordam de maneira delicada por meio de imagens cuidadosamente construídas, a partir da utilização de elementos sempre presentes como a água, o fogo, o vapor, o vento, o fogo, o jogo de luzes e sombras, os longos planos-sequências, os diálogos lentos… o tempo e a espera. A natureza humana é o centro; o ponto de partida e de chegada de cada um de seus filmes, que levam o espectador a um mergulho profundo nas vicissitudes da alma.

Os filmes de Tarkovski, revelam uma marca de autoria inquestionável, tornando o cineasta um dos mais admirados na história do cinema. Apesar de sua filmografia relativamente curta – sete longas-metragens e três curtas, além de um documentário – em uma carreira interrompida precocemente aos 54 anos de idade, Tarkovski influenciou e influencia tantos outros realizadores cinematográficos em diversas partes do mundo.

Mas o que torna Andrei Tarkovski este ícone da sétima arte? Sem dúvida, seu estilo ímpar de manipular os recursos cênicos e o repertório da linguagem cinematográfica para revelar sua visão de mundo. A partir de uma concepção do cinema muito particular, Tarkovski buscou imprimir suas experiências pessoais, sua memória, lembranças e ideais, sua forma de vivenciar a fé e experimentar o sagrado, sua ética e maneira de encarar a própria vida, tudo isso por meio do que ele definiu como “associações poéticas”, ainda que ele veja o cinema como sendo “a mais realista das artes”. O cineasta russo era um místico, alguém que buscava negar que a matéria seja um fim em si mesma e para si mesma. Por meio da manipulação dos elementos cênicos, Tarkovski criava o que se entende por “atmosfera” ou “ambiência” fílmica, de tal modo que o encontro entre a dimensão material da imagem e a interioridade do espectador suscitam afetos da ordem da poesia, do sagrado e da experiência espiritual.

Tarkovski era um diretor meticuloso, detalhista, que via em cada plano um quadro a ser cuidadosamente preparado, com um significado pleno a ser esgotado naquele tempo de duração do plano.  Como ele explicou em seu livro, Esculpir o Tempo (2010), a capacidade do cinema para capturar o tempo é a essência fundamental da arte cinematográfica. Daí sua busca por um cinema baseado na observação plena do momento presente. Para ele, não havia nada escondido por trás do que ele revelava na cena. A imagem fala por si, é o que é, carregada de pleno significado e cabe ao espectador entregar-se a ela sem buscar encontrar um significado oculto. Em seu livro “Esculpir o tempo” (2010), o cineasta afirma que “A chuva, o fogo, a água, a neve, o orvalho, o vento forte – tudo isso faz parte do cenário material em que vivemos; eu diria mesmo da verdade das nossas vidas.”. (TARKOVSKY, 2010, p. 255)

Para Robert Bird, profundo estudioso da obra de Tarkovski e autor do livro “Andrei Tarkovsky – elements of cinema” (2008), o cinema de Tarkovski revela um aspecto místico e poético, como reflexo da própria personalidade do cineasta. “Para o místico, as coisas falam. As coisas se transcendem, se metamorfoseiam: a pedra fala, a árvore exprime, a água canta. Em Tarkovski, o místico e o poeta convivem sob o mesmo teto. A chuva de verão que cai numa campina, ou a neblina que envolve os cavalos se lavando à beira de um rio, o vento que varre a plantação de sorgo, as algas que dançam lentamente sob a água transparente de um riacho, o fogo que queima um livro, ou os antigos ícones ortodoxos, tudo isso é elemento de poesia.  (BIRD, 2016)

Em Tarkovski, o cinema se faz arte em sua expressão mais plena, ao tangenciar o olhar e a alma do espectador com a experiência do inefável. Em suas próprias palavras, “A arte afirma tudo o que há de melhor no ser humano: a esperança, a fé, o amor, a beleza, a prece… aquilo com que sonha, as coisas pelas quais espera. (…) O que é a arte? Como uma declaração de amor, a consciência de nossa dependência mútua, uma confissão, um ato inconsciente que reflete o verdadeiro sentido da vida, o amor e o sacrifício.” (TARKOVSKI, 2010)

Para aqueles que quiserem vivenciar uma rica experiência de cinema, segue a filmografia de Andrei Tarkovski (alguns filmes estão disponíveis no You Tube, em alta qualidade):

– Os assassinos (curta) – 1956

– Hoje não haverá saída livre (curta) – 1959

– O rolo compressor e o violinista (curta) – 1960

– A infância de Ivan – 1962

– Andrei Rublev – 1966

– Solaris – 1972

– O espelho – 1974

– Stalker – 1979

– Nostalgia – 1983

– Tempo de viagem (documentário para a RAI) – 1983

– O sacrifício – 1986

 

Graziela Cruz é professora no departamento de Filosofia da FAJE

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