Alfredo Sampaio Costa SJ
Uma vez entendida qual é a importância do coração, é fácil entender que se deve fazer grande atenção ao que acontece dentro dele. Aprofundemos um pouco o que significa a “custódia do coração”, tema tão caro à tradição espiritual cristã[1].
- a) Atenção a si mesmos: A ascese supõe necessariamente uma dupla atenção contínua a nós mesmos e ao ideal que queremos atingir[2]. Na Antiguidade, esse princípio foi reconhecido na máxima famosa do Oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo”. Já muito antes, o Antigo Testamento havia multiplicado as recomendações na mesma direção[3]. O NT segue o mesmo caminho[4] e retoma os mesmos termos ou fala da vigilância[5].
“Faz atenção a ti mesmo”, repete com insistência e convicção S. Basílio[6]. Mas atenção para não fazer disso uma abstração da nossa relação a Deus. O conhecimento de si, que é verdadeira sabedoria, é o conhecimento daquilo que dá sentido à nossa vida. Por esse motivo, Teófano ao invés de pregar a atenção a si, falará da atenção ao coração:
“É preciso concentrar a atenção no coração e conservá-la constantemente à presença do Senhor”[7].
“Quererei chegar a compreender a profundidade do coração e poder seguir atentamente cada batida dele”. O que é essa compreensão do coração se não a consciência de desejar a Deus, de ser unidos a Ele, a consciência de que os nossos atos são a expressão do nosso amor por Deus, ou seja, a consciência do meu “eu” nele? “Vós me perguntais: como se pode entrar mais profundamente na meditação do meu “eu”? E por quê? Concentrai mais a vossa atenção no vosso coração e não meditais sobre o vosso “eu”, mas sobre o Senhor, e fa-lo com piedade e contrição. E isso é tudo” (Teófano, o Recluso, Cartas 74, 403).
A velha “máxima”: “Conhece-te a ti mesmo”, significa, portanto, na terminologia de Teófano, exatamente: “conhece o teu coração”. Só a alma fiel e crente é capaz de ter uma ideia de si mesma e pela pureza de coração é capaz de colher o sentido da sua vida. Não é suficiente realizar boas ações exteriores, é preciso ter bons pensamentos e experimentar bons sentimentos; é preciso adquirir “a arte de governar os movimentos do coração, aquilo que os Santos Padres chamam de atenção, sobriedade, atividade interior” (Homilias, 191ss). Essa concentração sobre o coração é o verdadeiro governo de si, e ali alcançamos a verdadeira liberdade. Alcançá-la é ocupar a fortaleza de uma cidade[8].
“Sempre em movimento, como um barômetro durante a tempestade, o coração goza na sua origem de uma certa estabilidade, ainda que relativa; é o coração que forma o caráter, provoca o zelo ou a frieza, determina a simpatia ou a aversão, modifica as ações e as reações individuais, e plasma no homem uma estrutura interna bem determinada. Para conhecer o homem é preciso, portanto, considerar o seu coração, porque a pessoa é, em realidade, aquilo que é o seu coração” (Cartas 37,305).
É o coração que mantem a nossa vida em uma dada direção e forma no homem uma estrutura interna bem determinada. Por isso, a atenção ao coração é a obra mais importante e primordial na vida espiritual[9]. A verdade de um indivíduo está naquilo que traz no seu coração. Se o coração repousa na verdade, tudo nele será verdadeiro, tudo nele é amor. Por isso o Senhor olha sempre o coração (cf. 1 Sm 16,7). Uma vida espiritual é autêntica somente se existe coerência entre oração e escolhas de vida, entre o nosso coração e o coração de Deus: “Caminharei com um coração íntegro…” (Sl 101, 2)[10].
- b) A atenção à pureza de coração: estar atentos ao próprio coração significa concentrar todas nossas faculdades e fazê-las convergir para o ponto central da vida humana que é a vida com Deus.
“Buscai aspirar a uma só coisa: a entrar dentro do vosso coração e ali permanecer na presença do Senhor, e não prestar mais atenção a nada que aconteça fora”[11].
“No coração se concentra toda a atividade espiritual do homem: as verdades recebem ali a sua marca, as boas disposições ali se radicam, enquanto a obra própria do coração é lhes dar gosto e torná-las amáveis. Quando a razão contempla o universo espiritual e as suas diversas partes, ou quando a vontade é atraída pelas ações pias que a solicitam, o coração deve antes de mais nada provar a sua doçura e comunicar o seu calor … A formação do coração é muito importante desde o início”. (Caminho de salvação, 238).
Para ser eficaz, a custódia do coração supõe que se distinga em primeiro lugar quem é amigo ou inimigo, o que é nosso e o que é estranho ao nosso verdadeiro eu. Porque é no coração que o inimigo semeia a má semente. Como consequência, não podemos nunca nos abandonar ao sono, não se pode nunca fechar os olhos do espírito[12].
O primeiro efeito da vigilância é velar a fim de que nenhum elemento destrutivo vindo de fora venha a se instalar no coração. A arte de conservar o paraíso do coração em um estado de inocência e de felicidade consiste, portanto, em truncar e extirpar desde o primeiro instante toda sugestão do inimigo. Teófano o Recluso já dizia: “É pelos sentimentos do coração que se diagnostica o estado do homem”[13]. O progresso da vida espiritual mede-se pois pela constância nas boas disposições do coração como uma árvore que fez crescer as suas raízes no solo (Compêndio moral, 135).
Daí a importância do “Discernimento dos espíritos”: é importante conhecer bem os movimentos que fazem oscilar o nosso coração, porque a vitória depende desse conhecimento: “O coração é um campo de batalha contra os inimigos de Deus”[14].
Pe. Alfredo Sampaio Costa SJ é professor no departamento de Teologia da FAJE
[1] T. SPIDLIK, Il cuore e lo spirito. La dottrina spirituale di Teofanie il Recluso. Libreria Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2004, pp. 109ss.
[2] Sobre esse tema podemos ver com grande proveito R. VERNAY, “Attention”, in Dictionnaire de Spiritualité I, coll. 1058-1077.
[3] Dt 4,23; Pr 2,1; 3,1; 4,1; 5,1; 7,24; Sir 1,29; 16,22; 22,25; 28,26 ecc.
[4] Mt 6,1; 16,6; Lc 21,34.
[5] Mc 13,33-37; Lc 21,36; Mt 25, 1-13; 1 Cor 16,13; 1 Tm 4,13; 1 Pt 5,8.
[6] SÃO BASILIO, Hom. In illud Attende, 3; PG 31, 204 A.
[7] Cartas 68, 390.
[8] Via de Salvação, 207; cf. PSEUDO-MACARIO, Hom. 50,4, PG 34, 820; ID, De Charit. 31, col. 933; cf. DIADOCO, Filocalia, III, p. 53.
[9] T. SPIDLIK, La preghiera secondo la tradizione dell’oriente cristiano, Lipa, Roma 2002, 323.
[10] Andrea TESSAROLO, “Il simbolismo del “cuore” nell’Antico Testamento”, in AAVV. La spiritualità del Cuore di Cristo, EDB, Bologna 1990, 56.
[11] Teófano, o Recluso, Cartas 42,323.
[12] Teófano o Recluso, Pensamentos, 68.
[13] Teófano, o Recluso, A vida espiritual, 7, p. 29.
[14] PSEUDO-MACARIO, Hom. 43, 3; PG 34, 773.
