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Passarinhos

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Marília Murta de Almeida

Mário Quintana diz em conhecido poema que, os que atravancam seu caminho passarão, enquanto ele, “passarinho”… Imagem também presente no salmo 141: “Os infiéis cairão na sua armadilha, ao passo que eu, eu passarei além.”

Mário Quintana, em seu Caderno H, diz que “a teologia é o caminho mais longo para se chegar a Deus”. A ironia do poeta nos instiga a pensar com ele e, quem sabe, também com a teologia. Seja pelos caminhos longos do pensamento ou pela seta rápida como raio do poeta, procuramos por Deus num mundo que parece insistentemente cada vez mais escondê-lo.

A face do horror, da mentira, do descaso com a vida, nos assalta a cada dia em nosso país ora marcado pela dor. Os mortos que se acumulam – e aqui falo da Covid, mas também da violência que não desaparece do nosso horizonte social – nos põem em estado de alerta, de tristeza, ou de raiva. A raiva nos direciona contra aqueles que, tendo poder para combater a morte cotidiana, não o fazem, ou mesmo a favorecem, o que nos traz a recorrente impressão de que nada podemos contra eles.

E então o poeta nos ajuda com o seu conhecido “Poeminho do contra”:

                       Todos esses que aí estão

                      Atravancando o meu caminho,

                     Eles passarão…

                     Eu passarinho!

Os versos do Quintana parecem acender em nós um fogo interno capaz de resistir. Quando eles passarem, eles que atravancam meu caminho, nosso caminho, o caminho do amor e da vida, que é (deve ser!) o caminho mais curto para se chegar a Deus, eu ainda estarei voando na liberdade da vida que passarinha. Eu e você, e nós todos que seguimos resistindo sem deixar de ver o horror que passará. Nós, e entre nós o Quintana, que, na leveza do passarinho, voamos enquanto esperamos que tantos outros também voem na construção de um mundo outro, que seja espaço de vida e liberdade.

O exegeta Paul Beauchamp, num belo livro em que empreende uma análise dos Salmos – Psaumes, nuit et jour – ao refletir sobre o Salmo 141, que diz da resistência do salmista frente ao inimigo, representante do mal, chama a atenção para seus últimos versos. Após pedir a Deus que o proteja do mal e dos que o praticam e podem influenciá-lo a também praticá-lo, o salmista finaliza assim:

Os infiéis cairão na sua armadilha,

                   ao passo que eu, eu passarei além.

Segundo Beauchamp, enquanto não somos capazes de perdoar e amar o inimigo, como nos pede Jesus, havemos de orar a partir de nossa imperfeita possibilidade e, nesse sentido, o desejo de que o inimigo caia em sua armadilha aparece legitimamente no salmo. Os infiéis, aqueles que atravancavam o caminho do salmista, que é o caminho do justo, cairão em sua própria armadilha. Na imagem do poeminho do Quintana, eles passarão, deixarão de existir. Os infiéis do salmo, caídos na armadilha, desaparecerão do caminho do salmista. E o salmista passará além. Como o passarinho do poeta, na leveza da liberdade e na força da persistência, o salmista ainda estará aí quando o infiel não estiver mais.

O poema, o salmo, a articulação do exegeta, e assim cada ponto luminoso que nasce, em qualquer pessoa que transita em meio à escuridão, tem a potência de nos guiar. O que as pequenas luzes nos indicam é o caminho por fazer – porque não se trata de desistir e tombar na passividade! –, e sua força só pode ser a da esperança. Mas a esperança necessita de raízes, e tanto as palavras do Quintana quanto as do salmista apontam para a confiança em si mesmo como fonte da resistência. É na confiança de que estarei ainda aqui, passarinhando ou passando além, que alcanço não sucumbir diante do que tenta me derrubar.

E não se trata aqui de individualismo, mas antes do fato simples de que, se eu sucumbir diante do inimigo que insiste em seu caminho de descaso pela vida, exaurido e sem vida diante de sua força perversa, não haverá mais para mim qualquer chance de luta. A persistência na esperança que garante a confiança em meu próprio voo é, assim, condição para que eu possa continuar passarinhando junto aos outros.

O salmista, entretanto, se dirige a Deus para que o proteja do mal que ele sabe que pode vir a penetrar em si, pela boca ou pelo coração. Sabe que nós, sem ajuda, podemos ceder àquilo que nos assalta de fora e permitir sua entrada em nossa interioridade, de modo a que o mal passe a ser realidade em nós mesmos. A diferença entre si mesmo e os infiéis, para o salmista, não é definitiva. Ele sabe que, sem a intervenção de Deus, a quem chama, e a quem pede que o ajude na resistência, ele mesmo pode vir a ser mais um entre os infiéis.

É então Deus, alcançado por meio do longo caminho da teologia ou pela via rápida da sensibilidade que se sabe ferida, que há de permitir, cada vez a um número maior de nós – até que sejamos todos nós –, que sigamos passarinhos.

 

Marília Murta de Almeida é professora no departamento de Filosofia da FAJE

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