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Guerras cotidianas e discussões morais

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Elton Vitoriano Ribeiro SJ

No dia 03 de março, o renomado escritor estadunidense David Brooks, publicou no The New York um instigante artigo sobre a guerra entre e a Rússia e a Ucrânia intitulado: The week that awoke the world (A semana que acordou o mundo). No artigo ele escreveu uma frase muito sugestiva para refletirmos sobre as guerras mundiais, as guerras particulares e as pequenas guerras cotidianas, e as nossas discussões morais. Disse David Brooks: “As relações internacionais, como a vida, são um empreendimento moral”.

Pensar as relações internacionais, as guerras, os debates da ONU, as negociações comerciais como empreendimentos morais abre uma porta importante para a entrada da filosofia na discussão. Na verdade, como já nos ensinou o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), a vida é um empreendimento moral. Mas, se a própria vida é um empreendimento moral, porque as discussões sobre a moral, e sobre os vários aspectos da vida e suas relações, é tão difícil? Porque muitas vezes sentimos que as sociedades contemporâneas não são sociedades de consenso, mas de divisão e conflito? Diante do ataque da Rússia à Ucrânia, diante da atuação dos EUA e da China na geopolítica mundial, diante das negociações na OTAN e na União Europeia, por que é tão vasto, em qualquer discussão, o universo das argumentações a favor e contra? E mesmo nas nossas guerras cotidianas da vida, por que a discussão e a polarização têm aumentando tanto? Por que o consenso e a concórdia, a paz e a cooperação, soam apenas como um sonho bonito ou uma ideia reguladora inatingível?

Qual o ponto principal das nossas discussões morais? Seria a dificuldade de ouvir o outro, como argumenta Rubem Alves no seu famoso artigo A Escutatória? Diz Rubem Alves: “Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil. Parafraseio Alberto Caeiro: Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma. Daí a dificuldade: a gente não aguenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer”.

Para o filósofo escocês Alasdair MacIntyre em seu livro After Virtue, diante das discussões morais entre grupos e pessoas que assumem posições contrárias, é muito improvável que um grupo ou pessoa venha a convencer o outro. Na verdade, cada um tende a pensar que seus argumentos são definitivos e infalíveis porque fundados em algum tipo de posição evidente que, infelizmente, por ideologia, inépcia ou maldade, o outro não percebe. Pronto, está organizada a polarização que não será desfeita, e na maioria dos casos, piorada com os argumentos. Nas discussões morais contemporâneas, MacIntyre encontra três características que tornam as discussões mais difíceis.

A primeira característica ele chama de “incomensurabilidade conceitual dos argumentos adversários”. Aqui ele nos explica que existe na prática uma impossibilidade de que os conceitos apresentados pelos debatedores venham a ter uma medida em comum que permita a discussão. Eles são incomensuráveis, porque sem um ponto em comum para mensurá-los, para medi-los. Cada argumento adversário, envolvidos no debate moral, é logicamente válido em seu contexto, mas não em outro contexto, e como não temos nada em comum, não é possível um início que possibilite uma construção argumentativa comum.

A segunda característica MacIntyre chama de “tentativa de construir argumentações racionais impessoais”. Essa característica faz com que os argumentos apresentados em discussões morais busquem ser impessoais na medida em que aspiram a critérios e padrões objetivos de racionalidade. Algo como uma linguagem moral livre de qualquer vínculo com pessoas, grupos ou associações. Muitas vezes o uso de expressões como isso é justo ou isto é certo ou isto é errado, parecem possuir uma racionalidade implícita independe de seu contexto e das preferências da pessoa que diz. Na verdade, em discussões morais, quando buscamos dar razões das nossas opções, uma variedade imensa de justificações está em jogo.

A terceira característica é aquilo que MacIntyre denomina como “esquecimento das origens históricas” dos argumentos. Toda opinião, argumentação ou ponto de vista moral possui origens históricas. Ora, como toda moral é construída historicamente, nesta construção encontramos uma diversidade muito grande de contextos, perguntas e soluções. Diversidade que muitas vezes não podem, simplesmente, ser colocadas homogeneamente em uma mesma discussão. Por exemplo, quando em uma discussão moral citamos vários conceitos ou eventos históricos, para sustentar nossa argumentação, muitas vezes esquecemos ou subestimamos a complexidade da história e do corpo de teorias e práticas que constituem as culturas humanas.

Pasmem, mas, mesmo quando falamos de “racionalidade”, de “razão”, como algo eterno e imutável, o correto seria falarmos sobre “padrões de racionalidade” que, normalmente, guiam nossas ações. Enquanto para alguns ser eticamente racional é agir baseado em cálculos de custos e benefícios, para outros é agir guiados pela opção fundamental que intenciona um fim último e verdadeiro do ser humano. E os exemplos poderiam multiplicar. Talvez, Alasdair MacIntyre seja pessimista ao afirmar: “A característica mais marcante da linguagem moral contemporânea é ser muito utilizada para expressar discordâncias; e a característica mais marcante dos debates que expressam essas discordâncias é seu caráter interminável”.

Para terminar com esperança, afirmo que acredito na possibilidade da construção de sociedades justas de reconhecimento e consenso. Sociedades onde a discussão é fundamental para as relações internacionais, o comércio, a troca cultural e a construção da paz. Nestas sociedades, a educação, em todos os seus níveis, é fundamental. Na verdade, a educação é o principal meio para humanizar o agir humano em sua realização social, ou nas palavras do filósofo brasileiro Henrique Cláudio de Lima Vaz (Padre Vaz – Ética e Justiça: Filosofia do agir humano): “(…) É, sem dúvida, no campo da educação que se travam, a cada geração, as batalhas decisivas dessa luta. É, aí, afinal, que as sociedades são chamadas a optar em face da alternativa onde se joga o seu destino: ou a de serem sociedades da liberdade que floresce na paz ao sol do Bem e da Justiça, para citar uma vez Platão em uma celebre analogia, ou a de enveredarem pelos obscuros caminhos da horda sem lei”. Eis o nosso desafio!

 

Elton Vitoriano Ribeiro SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia e Reitor da FAJE

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