“Homem e mulher os criou” (Gn 1,27)
Geraldo De Mori SJ
O dia 8 de março, dia Internacional da Mulher, tem sua origem em manifestações organizadas por mulheres, entre o final do século XIX e a primeira década do século XX, com reivindicações de melhores condições de vida e trabalho e o direito ao voto. Ao longo do século XX e no início do século XXI, a consciência da igualdade de direitos e a afirmação da diferença de sexos cresceram muito no mundo inteiro, seja no âmbito da sociedade civil, seja no âmbito das religiões. Apesar de terem avançado na conquista da cidadania, a cada ano, no dia que lhes é dedicado, as mulheres, e muitas instituições que acompanham e apoiam suas lutas, trazem dados que mostram o quanto a humanidade ainda está distante de reconhecer e fazer valer a equidade de gêneros, condição mínima para que haja justiça nas relações entre homens e mulheres. No Brasil, infelizmente, chama a atenção o alto índice de violência de homens contra as mulheres, que faz com que o país, no final de 2021, ocupe o quinto lugar no mundo no ranking de feminicídios.
No interior das igrejas cristãs em geral, e no da Igreja católica em particular, também cresceram muito, ao longo do último século, o apelo ao reconhecimento do papel e do aporte da mulher na história, na sociedade e na Igreja, por um lado, e as reivindicações à sua participação ativa nos ministérios, mesmo no do sacramento da ordem, nas instâncias de governo, discernimento e decisão eclesial, por outro. Na Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe, realizada entre 21-28/11/2021, no México, esse apelo e essas reivindicações foram expressos respectivamente nos desafios 22 e 3 dos 41 que foram selecionados pelos assembleístas como importantes para serem enfrentados pela Igreja.
O crescimento da consciência do papel e do aporte da mulher no conjunto da sociedade e das religiões, a constatação da violência a qual ainda ela é submetida, sejam elas reais, como nos feminicídios, sejam simbólicas, como nas muitas formas de assédio moral e sexual/sexista e nos infinitos modos de dissimular e perpetuar sua submissão, impedindo que usufrua de equidade em todos os processos sociais, políticos e jurídicos, coexistem, nos últimos anos, com a acusação de que os grupos feministas, juntamente com os que advogam o direito à diversidade, estariam promovendo uma abominável “ideologia de gênero”, vista como uma das principais ameaças à sociedade na atualidade.
Como nada do que é humano é estranho ao Deus da revelação cristã, que tomou carne de homem em Jesus de Nazaré, “nascido de mulher” (Gal 4,4), as discussões referentes à situação atual da mulher na sociedade e na Igreja não podem ser ignoradas, nem pelos cristãos/as, nem pela teologia que queira estar preparada para responder “com mansidão e temor a qualquer que peça a razão da esperança” (1Pd 3,15) que habita quem crê no Nazareno, confessado como Senhor, Messias e Filho de Deus. Nesse sentido, o Dia Internacional da Mulher pode ser uma ocasião propícia para uma revisão profunda da maneira com que cada um se relaciona com essa figura fundadora da diferença na visão bíblica e cristã do ser humano, que deveria repercutir na visão eclesial.
O filósofo Paul Ricoeur, num texto publicado na revue Esprit, em 1960, aborda o tema da sexualidade ao redor dos termos maravilha, errância, enigma . Esses três termos, utilizados por ele para falar da sexualidade, podem muito bem ser aplicados para pensar a diferença de sexos, em geral, e a condição feminina, em particular. De fato, uma comparação entre os mitos que dizem a diferença de sexos na visão bíblica, a saber: (1) Gn 1,27-31; (2) Gn 2,7.18.20-25, e os mitos dos andróginos, sobretudo na descrição que dele dá Platão no Diálogo O banquete, mostra duas visões distintas da diferença sexual. Por um lado, ela é vista como algo original, como aparece no relato em que homem e mulher são criados à imagem e semelhança de Deus, abençoados e dotados do poder do domínio e do cuidado do conjunto da criação, apreciados como “muito bons” (Gn 1,27-31), ou nos dois atos através dos quais Deus cria, primeiro Adão, e, diante de sua solidão, a mulher, “osso de seus ossos, carne de sua carne”, que suscita o desejo que leva o “homem a deixar seu pai e sua mãe e se unir à sua mulher, tornando-se uma só carne”. Por outro lado, no relato platônico, o humano original era completo, um andrógino, que, por rebelar-se contra os deuses, foi castigado e “cortado ao meio” (daí o termo sexo = secare, ou seja, separar), buscando, desde então sua “outra metade”, o que ajuda a entender o desejo sexual. No primeiro mito, a diferença é original e vista como bênção, condição de possibilidade da união dos sexos. No segundo, ela é o resultado de um castigo, que produz uma ausência, a ser preenchida na união.
Certamente a condição sexuada do ser humano é lugar do que há de mais belo e profundo na existência humana, pois é a expressão de uma capacidade de dar-se, entregando ao outro o que de mais íntimo se tem, mas também recebendo em si o que de mais precioso o outro possui, sem contar que é através dos atos conjugais que a vida tem sua origem. Nesse sentido, como bem viu Ricoeur, a sexualidade é “maravilha”. Mas, o que dá lugar ao que há de mais sublime nas sensações e nos sentimentos humanos, também pode derivar em violência, em culpabilidade, muitas vezes mórbida, em toda sorte de agressões, que derivam, infelizmente, em morte. Nesse sentido, a sexualidade é “errância”. Essa ambivalência, entre maravilha e errância é que a leva a ser caracterizada como enigma, ou seja, aquilo que há de mais sublime e humanizador pode derivar no mais abjeto e mais destruidor da humanidade do ser humano. Nesse sentido, a sexualidade possui algo que é da ordem de um “excesso”, podendo, como diz o termo enigma, ser a expressão de um sentido, ou a manifestação de um não sentido.
Isso que vale para a sexualidade em geral, pode também ser aplicado para a condição feminina, em particular, em cada época e lugar. Nesse sentido, dois termos bíblicos importantes, “espírito” (= ruah) e “sabedoria” (= hokma), que no hebraico são femininos, possuem características importantes a serem captadas para resgatar o lugar e o aporte da mulher na sociedade e na Igreja. A ruah divina é o que capacita à relação e cria comunhão. Na origem de tudo a divina ruah, “pairava sobre as águas” (Gn 1,1). Por sua vez, a hokma = sabedoria divina é tida como “primícias das obras do Senhor”, “arquiteta” do mundo, “suas delícias”, “alegrando-se com os filhos dos homens” (Pr 8,22-31), sabedora do que é agradável a Deus e do que se conforma às suas obras (Sb 9,9). Esses traços femininos da ação divina, podem despertar, num mundo tão marcado somente pela negatividade, o maravilhar-se, frente à condição humana, em geral, e à feminina, em particular. Como no início da criação, deveria levar cada um a ver tudo como bom, ou muito bom, tão presente em tantos olhares femininos sobre a existência.
Mas o maravilhar-se não pode negligenciar e ignorar as errâncias, que, no que diz respeito à condição feminina, mesmo na segunda década do século XXI, ainda é feita de muitas injustiças. Contra elas muitas mulheres têm se levantado em suas lutas por igualdade de direitos, respeito às diferenças, denúncia contra toda sorte de violência. Para isso, talvez, muito pode ajudar a categoria enigma, associando-a à categoria mistério, que se nega a toda apreensão manipuladora da condição feminina, mas que busca acolher o que nela tem de revelação, de algo que é da ordem do excesso do dom.
Geraldo De Mori SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE