Álvaro Mendonça Pimentel SJ
Álvaro Mendonça Pimentel SJ
A indignação me liberta. Por ela, conduzo ao polo da palavra a agressão outrora sofrida, cuja dor me dominava e modificava a tonalidade de meu sentimento do mundo. Diferencio-me, reunifico-me, ao contar o acontecido a alguém confiável e forte o suficiente para suportar a infelicidade que lhe apresento. Amigo ou amiga de rara presença, capaz de escutar meu sofrimento, atentamente, sem acusar-me, sem rechaçar-me. Em sua ausência, buscarei um ministro digno ou um profissional da escuta. Preciso de alguém resistente e flexível. Não um qualquer, mas forte o suficiente para confrontar o horror, para vencer a repugnância que sofredores provocam em quem os encontra. Se tenho essa graça, se posso simplesmente desabafar a sós com outro humano, com a segurança de que serei acolhido e não julgado, cria-se a distância saudável entre mim e a dor, a distância sagrada da palavra!
Mas algo acompanha, por vezes, a indignação: o ímpeto de vingar-me e exercer violência sobre quem me agrediu. Talvez eu obedeça ao ímpeto, e permita que a violência atravesse meu corpo. Jorrarão, por exemplo, palavras venenosas contra meu ofensor. E tais palavras, num círculo de guerra, alimentarão secretamente a dor do passado, levando-me a regredir da indignação ao queixume. Devo admitir, portanto, que ainda me encontro ligado ao infortúnio e sirvo ao mal que atravessou a minha vida. Ele domina meu coração. Aliás, frequentemente não percebo a armadilha, até que meu amigo verdadeiro venha despertar-me, ao sugerir: – “Com tuas críticas mordazes, não te colocas no mesmo nível de teu agressor? Conheço teu coração, sei que não desejarias agir assim!”
A força dessa palavra torna-se lampejo de verdade e ilumina-me. Considerava-me completamente vítima e condenava meu inimigo como um completo agressor. Mas agora compreendo que a violência que o dominou e, a partir dele, transbordou sobre mim, também encontrou guarida e ponto de ataque em meu coração. Contatar o mal que brota da semente da agressão e que se expressa em minha vida, no avesso da vingança, eis o que abre nova compreensão e, quem sabe, novo sentimento em relação a meu agressor.
Sem aceitar que meu antigo adversário me fira novamente, concedo que algo se modifique em mim… Um movimento interior, que se produz sem que eu o explique, mas que exige meu consentimento para progredir, me toma pela mão e me conduz. Desde então, começo a me interrogar: – “Teria ele também vivido algo similar ao que ocorreu comigo?”; “Atrás da máscara de dor ou mesmo de horror, que alguns ofensores sustentam, não haveria um simples ser humano que, assim como eu, fora agredido no passado?” Essas e outras questões franqueiam passagem ao íntimo desse outro que foi injusto comigo. Cria-se algo como a familiaridade entre nossos afetos.
Quando desvelo o sentimento doloroso de alguém, abre-se a possibilidade da intuição de outro coração e, em consequência, da compaixão. Ela acontece e me converte, lentamente… Deixo de sofrer “contra” meu agressor e passo a sofrer com o outro agredido. – “E se houvesse uma complexa rede de sofrimentos ligando todos os seres humanos?” “E se todos necessitassem de salvação, assim como eu?”
Quem vive separado de si mesmo não consegue ter acesso a outra pessoa. Perceber e perceber-se constituem um só movimento, à maneira do que ocorre no toque. O sentir-se e o sentir se acompanham. De modo análogo, minha intuição do coração humano sofredor e violento apoia-se em meu próprio sofrimento e violência. Compadeço-me do outro, porque também padeço. Encontro-me agora em condição de corrigir quem errou. Da indignação à compaixão, a ação da graça do processo de perdão encaminha-se ao desfecho.
Mas ainda quero dizer-lhes algo…
O assassino “caçado”, o “sádico cruel”, apresentado como “máquina de matar”, “serial killer”, disseram. A caçada transformada em atração televisiva, em espetáculo da justiça. O assassino assassinado, sua morte celebrada, declarada heroísmo. Cento e vinte e cinco disparos, disseram. Quem era Lázaro? Como se tornou homem perigoso? Quando terá encontrado alguém capaz de ouvi-lo? Quem o utilizou para amedrontar a população e dominar a região? Quem o convenceu de sua própria maldade? Por que todos vibraram com sua destruição? Por que seu corpo foi arrastado diante das câmeras e jogado como um saco de ossos numa ambulância? Por que seu rosto deformado foi cruelmente exposto nas redes?… assim me disseram.
Teremos compaixão de Lázaro? Admitiremos que ele não era o mal encarnado, o demônio, mas apenas um pobre ser humano, necessitado de contenção, de tratamento e de salvação? Aceitaremos a parte de responsabilidade, quem sabe até a maior parte, que nossa sociedade possui por sua vida e por sua morte?
Hoje, pedi ao Deus da vida que o corrija e o abrace, que Lázaro encontre na eternidade os que maltratou e os que o maltrataram e que todos se compadeçam para alcançar o perdão.
Álvaro Mendonça Pimentel SJ é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE