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A Igreja católica no Brasil: entre a insignificância e a irrelevância?

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Geraldo De Mori, SJ

“Já não vemos mais prodígios, já não temos mais profetas, ninguém sabe, entre nós, até quando isto será!” (Sl 73 (74),9)

 

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) realizou, entre os dias 19 e 28 de abril, sua 60ª Assembleia Geral, que elegeu os membros da Presidência, o Secretário Geral e os bispos encarregados de acompanhar as diferentes Comissões que compõem a instituição e animam a vida pastoral da Igreja católica no país. Fora dos ambientes eclesiais quase não se ouviu falar dessa Assembleia, do que nela foi discutido e decidido. É como se a Igreja católica não existisse para a imprensa nacional laica. Uma das únicas notícias publicadas trazia uma denúncia sobre a “branquidão” dos novos membros da Presidência da entidade, indício de um possível racismo no seio da hierarquia.

Esse desinteresse dos grandes meios de comunicação do país pela Igreja católica pode ser visto de várias maneiras. Uma delas consiste em associá-lo à lógica dos veículos de imprensa, que privilegia notícias “quentes”, como as de escândalos e intrigas, ausentes numa eleição interna à instituição eclesiástica. Uma segunda consiste em remeter a ausência da imprensa em um momento crucial da instituição católica à falta de formação em questões religiosas ou eclesiais por parte dos novos profissionais da comunicação. Uma terceira consiste em identificar o desinteresse a um boicote ao que faz a Igreja no Brasil. Todas essas explicações situam o problema fora da Igreja, não levando em conta que as razões podem encontrar-se nela mesma e no que se tornou aos olhos dos grupos que detêm o poder de veicular o que vale ou não a pena ser visto.

A teologia política da segunda metade do século XX, representada sobretudo pelos teólogos alemães Johann Baptist Metz e Jürgen Moltmann, elaborou duas categorias importantes para entender a relação entre a religião e os indivíduos no mundo moderno e entre a religião e a sociedade: significado e relevância. Uma religião “interessa” se ela oferece algum significado ou sentido para um indivíduo, respondendo às grandes questões existenciais que não cessam de emergir ao longo de sua vida. Mas a religião não existe somente para responder aos problemas dos indivíduos. Elas também impactam a sociedade, podendo ou não ser relevantes, interferindo em aspectos fundamentais da construção do “nós” coletivo, formando imaginários que podem definir engajamentos em lutas por mais justiça, defesa da vida e solidariedade.

Na mesma época, a América Latina elaborou uma reflexão teológica que partia de uma contemplação da realidade, identificando nela os principais “sinais dos tempos”. A esse momento, denominado “ver”, se seguia, o do “julgar”, que consistia em discernir, à luz da Palavra de Deus e da tradição teológica e doutrinal da Igreja, os apelos de Deus presentes nos “sinais dos tempos”. Ao julgar se seguia uma ação ou uma práxis, visando a mudança da realidade contemplada inicialmente no ver. Partindo da vida, o olhar teológico voltava de novo à vida, tentando oferecer a quem fazia o caminho, elementos para pensar sua vida enquanto cristão/ã, levando-o/a a um compromisso transformador.

Nos dois casos, a religião ou o cristianismo se traduzia em significado e relevância e a instituição que o encarnava também despertava interesse, porque, ao mesmo tempo, oferecia a seus fiéis sentido para a vida e uma incidência ao ato de crer, identificado na América Latina com a opção preferencial pelos pobres e um modo profético de ser Igreja. Não por acaso, no Brasil a Igreja católica foi por várias décadas, no período que se seguiu ao Concílio Vaticano II, uma das instituições mais respeitadas, pelo papel que desempenhou, de defesa da vida, engajamento junto aos mais pobres, luta pela justiça.

Vários intérpretes do catolicismo no Brasil contemporâneo comparam a ousadia profética da Igreja entre o final do Concílio e a década de 1980, e o arrefecimento da profecia entre a década de 1990 e o período atual. Em parte, essa mudança teria sido determinada pela política eclesiástica de João Paulo II e Bento XVI, que nomearam bispos mais preocupados com a disciplina e a doutrina do que com o compromisso com o mundo dos pobres. Segundo os mesmos intérpretes, a essa política haveria que associar o modelo eclesial que passou a ser valorizado, não mais o da eclesiologia “povo de Deus”, baseada na igual dignidade de todos os fiéis, conferida pelo batismo, que deu origem às inovadoras experiências das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e das pastorais comprometidas com os mais pobres, mas o de uma eclesiologia hierárquica, centrada nos ministros ordenados e preocupada mais com a liturgia do que com a vida.

Essa interpretação, verdadeira em muitos aspectos, nem sempre se dá conta de que o Brasil dos anos 1960-1980 não é o mesmo dos anos 1990-2020. De fato, o período pós-conciliar, marcado por mudanças estruturais no país, ainda não conhecia a irrupção do pluralismo de princípio que irrompeu no país a partir da década de 1990. A uma sociedade que saía do mundo rural e se urbanizava rapidamente sucedeu uma sociedade já urbanizada, que trazia em si todas as contradições da história do Brasil acrescentadas às novas contradições de um mundo urbano hostil, cheio de ameaças para os indivíduos e as coletividades, com novas formas de pensar e viver a afetividade, a sociabilidade, as relações com as diferenças, figuradas pela condição social, étnica, de gênero e religiosa.

A pluralidade provoca a fragmentação não só dos indivíduos, mas também das instituições que compõem as várias dinâmicas da sociedade e da cultura. Mesmo as religiões são fortemente impactadas. No caso do protestantismo, pela multidão de novas Igrejas, muitas delas respondendo a situações particulares de grupos que vivem num bairro, sem nenhuma filiação com as confissões mais institucionalizadas. No catolicismo, a fragmentação vai na direção dos movimentos, que proliferam e dificultam qualquer pastoral de conjunto, oferecendo sentido aos fiéis, mas nem sempre os associando a um nós mais amplo, representado pela própria identidade “católica” da Igreja. Em alguns casos, chega-se a viver um verdadeiro “cisma silencioso”, em que muitos fiéis seguem mais aos “gurus” e “influencers” do que às orientações dos bispos, da CNBB e do Papa.

Nessa aparente “Babel” de religiões, que afeta inclusive a Igreja católica, ser significante para os indivíduos e relevante para a sociedade torna-se muito mais difícil. Isso não significa que a profecia seja impossível ou que uma Igreja comprometida com os mais pobres, em defesa da justiça, tornando-se samaritana, seja inviável. Ela continuará existindo, certamente não mais com uma grande adesão como a que se seguiu ao Concílio, mas com um papel fundamental, o de alimentar a esperança da grande multidão de “descartados” do sistema. Provavelmente na Bíblia, o profetismo, incômodo e provocante, sempre tenha sido uma minoria crítica, que incomodava o sistema e a religião instituída. Essa figura profética e crítica da Igreja certamente não interessa ao sistema, nem a seus porta-vozes. Por outro lado, seu lugar não são os holofotes da mídia e das redes sociais, mas o mundo dos que sofrem e lutam para encontrar soluções para os principais problemas da vida, dando-lhes esperança contra toda esperança, suscitando novas formas de fazer se aproximar deles/as o reino de Deus.

Geraldo De Mori, SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

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