A importância das verdadeiras amizades na vida de Inácio[1]

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 Alfredo Sampaio Costa SJ

Em um mundo marcado pelo digital, onde os relacionamentos se tornam sempre mais vazios e impessoais, ousamos trazer aqui um tema muito esquecido, mas fundamental: a amizade! E queremos partilhar a experiência que Santo Inácio viveu e que acabou culminando com a formação de um grupo de “Amigos no Senhor” que originaria a própria Companhia de Jesus.

“Na verdade, o coração transbordante de Inácio encontrou eco no de seus amigos; se não mencionássemos estas amizades, desfiguraríamos o retrato de nosso santo” (Hugo Rahner)

Inácio foi grande amigo de muitas pessoas e ajudou a criar amigos e encontrar meios para o crescimento das suas amizades. Não nos deixou sobre esse assunto nenhum tipo de tratado (aliás, coisa que não fazia muito seu estilo) nem uma iniciação metódica e prática no estilo de seus Exercícios Espirituais, mas com certeza o modo como ele captou amigos e como cultivou e promoveu a amizade nos permite desvelar em Inácio um estilo pessoal de amizade e uma maneira de promovê-la e desenvolvê-la que nos legitima a chamá-la “arte da amizade”.  Com uma notável percepção profunda e prática da natureza do coração e da sensibilidade humana, Inácio, ainda que não nos ofereça uma obra teórica de grande espessura, com sua vida e maneira de proceder nos inicia no caminho de uma sólida amizade. 

 

Inácio e sua busca de companheiros

Desde muito cedo, depois de sua conversão, ao regressar de sua peregrinação à Terra Santa, Inácio se ocupou de buscar companheiros, propriamente cordiais colaboradores do projeto de “ajudar as almas”.  O primeiro grupo que formou (Arteaga, Calixto, Cáceres e Juanito) não alcançou o objetivo último de constituir-se em um agrupamento estável de amigos. Inácio tirará daí uma primeira lição sobre a amizade, a saber, que se trata de um processo delicado, lento e frágil.

A partir de 1529, em Paris, para onde se tinha dirigido, entre outros motivos, para buscar companheiros, começa uma etapa sólida de amizade que será a primeira pedra da Companhia de Jesus. Pedro Fabro, ao relembrar os dons recebidos em sua vida, dá graça a Deus pelos bens espirituais e materiais recebidos ao partilhar quarto, no colégio de Santa Bárbara, com Francisco Javier e particularmente com Inácio de Loyola:

“Deus quis que eu ensinasse a este santo homem, e que mantivesse conversação com ele sobre coisas exteriores e, mais tarde, sobre as interiores; ao viver no mesmo quarto, compartilhávamos da mesma mesa e da mesma bolsa. Orientou-me nas coisas espirituais, mostrando-me a maneira de crescer no conhecimento da vontade divina e de minha própria vontade. Por fim chegamos a ter os mesmos desejos e querer” (Pedro Fabro, Memorial 7-8). 

Quando, dez anos mais tarde, em Roma, o grupo de amigos se reunia para deliberar sobre como deveria ser seu futuro, a primeira questão que trataram foi se o grupo deveria se dissolver ou consolidar-se em alguma forma de associação. Decidirão com toda firmeza não o dissolver, já que se tratava de uma obra que Deus havia realizado. O grupo de companheiros não só tinha amadurecido, mas também tinha adquirido uma densidade espiritual tal que a amizade estará na base de todas as decisões de futuro que o grupo reunido tomará para deliberar. 

A partir de 1540, os amigos começam a se dispersar para responder às exigências apostólicas. Contudo, a dispersão ocasionada pela missão não diminuiu a qualidade da verdadeira amizade e deixou, ao mesmo tempo, uma série de testemunhos de como o humano é constitutivo de uma autêntica experiência de amizade cristã e espiritual. Sigamos, pois, a gênese e a evolução desta amizade centrando-nos em Inácio de Loyola, núcleo do grupo de “amigos no Senhor”.

 

A amizade na vida de Inácio

Uma importante questão que temos que encarar ao empreender um estudo sobre Inácio e a amizade é como Inácio entendia a amizade. Sua inclinação à amizade foi produzindo com o tempo, sobretudo depois de sua conversão, frutos de maturidade humana e cristã. Não é fácil calcular a qualidade de sua amizade quando, a partir de 1541, seu amor passa pela condição de ser Prepósito Geral da Companhia de Jesus recém-fundada, uma vez que, no cargo de Superior Geral, Inácio nem sempre podia transparecer o que trazia no seu coração. Como ele mesmo confessou, segundo o testemunho de Gonçalves da Câmara, “quem media seu amor pelo que ele mostrava, enganava-se muito” (Memorial de Gonçalves da Câmara 105). Não obstante, podemos afirmar que o governo de Inácio sempre foi praticado com amor. Este comportamento de governo amoroso praticado por Inácio é a expressão viva do que ficou expresso na Fórmula ou Regra da Companhia de Jesus, que o Superior deve sempre recordar-se “da bondade, da mansidão e da caridade de Cristo” (Fórmula do Instituto, cap.3).

 

Uma questão prévia: 3 níveis de amizade

A partir dos dados que nos oferece sua biografia, podemos distinguir três aspectos ou níveis da amizade na vida de Inácio.

Em primeiro lugar, ele busca companheiros de apostolado. Não exclui de nenhum modo a relação amistosa, mas se preocupa sobretudo de ajudar as almas e para isso é importante o grupo de companheiros. É o tipo de amizade que o moveu a buscar os primeiros companheiros de Barcelona e Alcalá. Podemos chamar este tipo de amizade de “amizade com”.

A esta “amizade com” se acrescenta a amizade daquelas pessoas que são destinatárias do apostolado. Assim, Inácio trata de fazer-se amigo das pessoas, de ganhá-las, pois o bem que oferece não é algo que se há de impor, mas sim receber como um dom e, portanto, deve-se ser acolhido desde o coração, desde uma certa amizade. Esta é uma “amizade para”.

Finalmente, em Inácio, dá-se a amizade no sentido mais estrito do termo: a amizade “no Senhor”, um modo de partilhar o mais profundo de cada um em reciprocidade. Esta amizade se dará sobretudo entre companheiros jesuítas, mas não exclusivamente entre eles e, além do mais, aparecerá inclusive antes de chegar a se formalizar compromissos apostólicos. Quer dizer, a amizade não nasce só do “para” e do “com” do apostolado, mas em alguns casos é o que sustenta o próprio compromisso apostólico. E a própria amizade implica uma reciprocidade no conjunto de aspectos da vida, tanto nos mais espirituais como nos mais humanos, inclusive como os materiais.

Essas distinções creio que nos podem ajudar a avaliar como estamos vivendo nossas amizades. E agradecer ao Senhor se encontrarmos amigos e amigas com quem vivamos a reciprocidade na amizade! 

 

Condições para poder cultivar boas amizades: Inácio, homem afável e próximo

Podemos afirmar que em Inácio há uma certa predisposição à amizade, já que as pessoas que com ele conviveram nos falam de sua proximidade com as pessoas, sua compreensão, sua grande capacidade de relação humana, de sua perícia para pôr de acordo as vontades das pessoas e de sua atitude sempre desinteressada e sua benevolência. Recordemos a modo de exemplo alguns testemunhos: Diz-se dele que era de “ânimo nobre e liberal”; que nas batalhas em que participou e em todas as dificuldades que viveu “nunca teve ódio a nenhuma pessoa”; que além do mais se destacava em “saber tratar os ânimos das pessoas, especialmente em resolver diferenças e discórdias”[2].

Todos esses dados nos fazem já vislumbrar o substrato humano afetivo de Inácio, sua “exuberante capacidade afetiva”[3] que se manifestará de distintas maneiras em sua polifacética vida e que se encontra na base do dom para captar amigos e cultivar uma verdadeira amizade.

Contudo, reagindo a sua excessiva confiança em si mesmo e no humano em geral, sua primeira atitude, após sua conversão, é uma tendência à solidão e a prescindir do apoio dos demais. Assim, nos pensamentos espirituais que lhe vinham durante sua convalescença em Loyola, “oferecia-se-lhe meter-se na Cartuxa de Sevilha, sem dizer quem era para que o considerassem de menos” (Aut. 12). E quando está para embarcar para a Terra Santa, não aceitará nenhum companheiro com ele: “E ainda que se lhe ofereciam algumas companhias, não quis ir a não ser só; somente queria ter a Deus por refúgio” (Aut. 35).   Assim, apesar do imenso valor que ele dava às amizades, não queria prender-se a elas em detrimento do seu desejo de sempre colocar Deus em primeiro lugar!

 

“Amigos no Senhor”

Pouco a pouco, Inácio, pela sua personalidade, vai se constituindo o núcleo de uma verdadeira amizade, aglutina verdadeiros amigos em um sentido pleno, humano e espiritual. Este é o significado da “amizade espiritual” ou “no Senhor”, uma amizade com raízes profundas no coração e com uma irradiação a todas as zonas da vida pessoal. Isto é, uma amizade plena. Com efeito, ninguém duvida das profundas raízes de fé que tem a amizade de Inácio e seus companheiros.

O primeiro grupo de verdadeiros amigos, todos eles, fizeram os Exercícios Espirituais, confirmando-se em propósitos de vida evangélica em Montmartre, realizaram práticas de devoção juntos (por exemplo, visitas periódicas à Cartuxa de Valvert) e, mais tarde, na Itália, entregaram-se à prática do apostolado. Suas vidas não se limitaram a isso. Os amigos ajudaram-se nos estudos e economicamente, partilharam refeições e conversações, viveram juntos momentos de trabalho intenso e de consolo. 

Temos aqui alguns dos fatores que contribuem para a criação de uma verdadeira amizade no Senhor! Repassando suas verdadeiras amizades, você seria capaz de destacar o que realmente contribui para que essas amizades se fortaleçam sempre mais? 

A descrição tantas vezes citada de Diego Laínez sintetiza adequadamente este caráter de amizade no sentido pleno de que estamos falando:

 “De tantos em tantos dias íamos com nossas porções a comer na casa de um e depois à casa de outro. Isso, juntamente com o visitar-nos amiúde e nos aquecermos, creio que ajudasse muito a manter-nos. Nesse meio-tempo o Senhor, especialmente nos ajudava assim nas letras, nas quais fizemos um proveito mediano, endereçando-as sempre à glória do Senhor e à utilidade do próximo, como em termos um especial amor uns aos outros e nos ajudar-nos também temporalmente no que podíamos” (Diego Laínez, Carta a Polanco de 16 de junho de 1547 (Fontes Narrativi I, 102-104).  

Mês que vem, dia 31 de julho, celebraremos Santo Inácio! Que ele nos inspire a construirmos amizades verdadeiras autenticamente fundadas no Senhor!

 

Padre Alfredo Sampaio Costa SJ é professor e pesquisador no departamento de Teologia da FAJE

26/06/2025

[1]  Baseado no texto de Josep María Rambla SJ, “El arte de la amistad en Ignacio de Loyola.” EIDES 51 (2008): 3-31. TRADUÇÃO E ADAPTAÇÃO = Alfredo Sampaio Costa SJ.

[2] Juan Alfonso de POLANCO, Summarium hispanicum, 5-6 (Fontes Narrativi 1,155).

[3]  J. Granero, San Ignacio de Loyola. Panorama de su vida. Madrid: Editorial Razón y Fe 1967, 20).

 

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