Carlos Roberto Drawin
Conta-se uma história bem antiga. Atualíssima. Ela teria ocorrido em Atenas, cidade idealizada como lugar de nascimento da democracia ocidental. Nela vivia um homem probo, famoso por sua honestidade chamado Aristides e, por isso, cognominado Aristides, o justo. Alguém, no entanto, fez uma acusação contra ele e, conforme as instituições atenienses, a assembleia dos cidadãos deveria julgá-lo para inocentá-lo ou condená-lo ao exílio. Os votos eram registrados em fragmentos de cerâmica chamados “ôstraka”, assim a condenação ao exílio era nomeada como “ostracismo”. O próprio acusado participou da assembleia e estava sentado ao lado de alguém que não o conhecia. Quando chegou o momento da votação que iria decidir o seu destino, o homem ao seu lado, querendo votar por sua condenação, mas, provavelmente analfabeto, não sabia escrever e se dirigiu justamente a ele para que o ajudasse. Curioso, Aristides lhe perguntou porque ele votava pela condenação do acusado e o desconhecido lhe respondeu que não suportava mais ouvir todo mundo dizer do tal Aristides que ele era um homem justo. Sem nada mais retrucar, Aristides escreveu o próprio nome na “ôstraka”.
Esse episódio, narrado por Plutarco, ilustra de modo exemplar uma questão crucial do pensamento político grego. As reuniões nas quais os indivíduos podiam expressar as suas opiniões e participar das discussões não preenchiam condições suficientes para assegurar a construção de uma sociedade justa. Por isso, Sócrates argumentava no sentido de mostrar a vacuidade das opiniões dos seus interlocutores e os convidava ao diálogo e ao exame ponderado de suas próprias razões. Somente assim, pensava o filósofo, poder-se-ia obter um acordo racional e não a mera opinião da maioria dos votantes, pois a maioria pode apoiar causas como a escravidão, o racismo ou a ditadura e nem por isso essas atitudes e decisões se tornam boas e justas. Como evitar que a livre expressão das opiniões produza o arbítrio e outros efeitos nefastos? Esse problema tornou-se um dos motivos principais da atividade filosófica em sua busca de contrapor a razão à violência. Mas a razão não é algo que cada um traz consigo, uma coisa pronta para ser usada. Ao contrário, bem o sabia Sócrates, ela nasce do paciente cultivo da fala dialógica, do elaborado jogo de perguntas e respostas. Todavia empenhar-se em tal jogo não era tarefa fácil, pois exigia o esforço da reflexão e esta significa examinar a pergunta em seus diversos aspectos e significações de modo a não se apressar em respostas fáceis e superficiais. O exame reflexivo é árduo, como, aliás, qualquer outra forma de exercitação – o aprendizado de um instrumento musical, de um outro idioma ou de um esporte – porque deveria preencher ao menos duas condições para a sua realização: o tempo e a escuta.
O sapiente Sócrates dizia nada saber para desarmar o interlocutor e convidá-lo à escuta. A escuta do outro e de si mesmo, interrogando as suas próprias palavras e emoções, leva-nos a abrir a guarda e a depositarmos as armas de nossas defesas pessoais. Somente, assim, podemos não apenas ouvir, mas começar verdadeiramente a escutar. Para tanto, se impõe certa distância das opiniões e crenças já cristalizadas e enrijecidas pelo hábito. Quando se fala em distância, logo se pensa em lugares diferentes, espacialmente separados, contudo, no domínio da reflexão o distanciamento de si mesmo não se dá no espaço, mas no tempo. Isso não é difícil de entender. Quando estamos sentados em algum lugar e olhamos em torno nós vemos algumas coisas, mas não enxergamos muito longe, o nosso olhar não alcança paisagens distantes. Quando fechamos os olhos e apelamos para nossas recordações, fantasias e ideias, então viajamos pelas terras imensas, quase ilimitadas, de nossa memória, imaginação e razão. Por isso alguns filósofos disseram que a nossa mente pode ser, de alguma forma, todas as coisas. Porque elas se presentificam em nós. Para se realizar esse “pode ser” de nossa mente requer-se o tempo necessário para trilhar percursos tão longos e para o alçar voo do pensamento. A escuta e o tempo estão intimamente relacionados e sem eles não há reflexão e diálogo. A palavra esvaziada logo se dilui, sem se fazer presença.
Retornemos ao episódio de Aristides. O desconhecido votou sem nada escutar, nem ninguém e nem a si mesmo, pois não se deu ao incômodo de justificar a sua decisão. Ela apenas expressou o seu sentimento de irritação suscitado pelo anonimato do “eles dizem”: estou farto de ouvir todo mundo falar da honestidade de Aristides. Isso basta: ele ouviu sem nada escutar ou ponderar. Por que a história é atualíssima? Porque vivemos no mundo midiático global. Recebemos continuamente mensagens e continuamente somos instados a opinar e reagir às mensagens recebidas. Vivemos em agitação incessante, pressionados por demandas esmagadoras, consumidos em deveres e prazeres fragmentários e dispersivos. Nessa sociedade de intensa excitação, ruido ensurdecedor e vertiginosa aceleração, o esquecimento prevalece sobre a memória, o gozo imediato estiola a imaginação e a estimulação avassaladora fluidifica o saber no aleatório das informações. O homem, desde sempre definido como animal falante, fecha-se numa individualidade carente de comunidade e de transcendência e, fragilizado, abisma na falta de sentido. Sem as condições da escuta e do tempo, a reflexão vai se empobrecendo e, sem ela, a palavra se esvazia e não mais se faz presença.
Carlos Roberto Drawin é professor emérito da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia