A suposta “cultura Woke” e a Filosofia

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Bruno Pettersen

Você já ouviu a expressão de que vivemos em uma “cultura woke”? Essa expressão tem ganhado cada vez mais espaço nas discussões culturais do século XXI e, aos poucos, se tornou parte do vocabulário corrente em debates públicos e redes sociais. Mas afinal, de onde vem essa ideia — e o que ela realmente quer dizer? Neste texto, proponho um rápido percurso pelas origens desse conceito, seguido de uma problematização igualmente concisa. Para tanto, deixe-me começar com um filme do século passado.

Matrix, de 1999, escrito e dirigido pelas irmãs Lilly Wachowski e Lana Wachowski foi um dos filmes mais impressionantes que já vi. O filme é uma reflexão filosófica sobre a realidade e a realidade artificial, onde uma IA malévola controla toda a humanidade. Salpicado por grandes cenas de ação inovadoras para o período em que foi produzido, a discussão filosófica é entremeada por saltos impossíveis, filmados de uma forma tecnicamente nova. O protagonista do filme é Thomas Anderson, que inicialmente não se dá conta de estar em uma realidade artificial e, depois de ajudado, é guiado para a compreensão da realidade por Morpheus e Trinity. Em uma das cenas mais famosas do cinema, é dada a Anderson a chance de conhecer a verdade ou ficar no conforto da ignorância: é a icônica cena das pílulas vermelha e azul. A pílula azul significa que ele permanecerá na ignorância, e a vermelha, que ele verá a realidade tal como é. O personagem de Anderson escolhe a pílula vermelha e então desperta (wake) para a realidade, tornando-se Neo e não mais Anderson. A palavra woke é o passado de “wake”, ou seja, “despertado”, e tem origem na ideia de acordar, despertar ou ver a realidade tal como é. Surge aí a ideia que fundamentará toda a ideia de ser woke.

Esse filme debate um dos temas mais centrais da filosofia: o conhecimento versus a ignorância, um mundo onde o conhecimento é doloroso e é acessado por poucos, e a ignorância é partilhada por muitos de modo confortável. Em um sentido filosófico, esse é um filme inspirado na famosa Alegoria da Caverna, presente no livro VII da República de Platão, onde um prisioneiro sai da caverna em direção ao conhecimento, enquanto os seus companheiros continuam presos no interior das sombras da caverna. Tanto o filme quanto a alegoria partem da mesma hipótese: há uma realidade metafísica que não é acessada pelas pessoas e que exige uma experiência radical para ser compreendida. Na alegoria de Platão deveríamos sair da caverna para ver a verdade e no filme deveríamos “tomar uma pílula”, foi assim que “tomar a pílula vermelha” tornou-se sinônimo de “ver a realidade”.

As expressões woke e “tomar a pílula vermelha” foram cooptadas na cultura de muitas formas possíveis. Deixe-me contar essas múltiplas adoções de uma forma resumida, a partir de uma batalha ideológica por quem julga que viu a verdade.

Inicialmente, essas ideias passaram a ser adotadas por grupos que tinham percebido uma “verdade” à qual apenas eles tinham acesso e que seria necessário despertar a sociedade. Nesse momento vários grupos norte-americanos adotaram essas metáforas para falar da preocupação com temas como os direitos das pessoas negras e da população LGBTQIA+, feminismo, justiça climática, inclusão social e o respeito às minorias de modo geral. Era “woke” quem havia despertado para essa realidade.

Contudo, num segundo momento, outros grupos que discordavam da defesa desses direitos começaram a entender woke como pejorativo e passaram a usá-lo para criticar o que consideravam um “excesso de politicamente correto” ou “militância ideológica”. Assim, diziam que era preciso tomar realmente a pílula vermelha e perceber a realidade inclusive por detrás do ser supostamente woke. Nasce aí a ideia de que quem era woke havia tomado a blue pill, enquanto quem não era woke era, na verdade, quem tinha tomado a red pill.  É aqui que surge essa expressão de ser uma pessoa blue pill ou ser um red pill, e hoje já há um número maior de pílulas, como a black pill e outras. Para citar Matrix mais uma vez, essa história toda de ser pílula isso ou aquilo, virou um buraco de coelho sem fim.

O núcleo de toda a guerra cultural de nossa época parece envolver justamente esse debate, suscitado por um filme paradigmático. Fiz um acima um apanhado dessa história, mas cabe agora minha avaliação.

O filme nasceu da tese de que podemos ter acesso à verdade por meio de uma ação e então despertar. Essa é uma boa ideia filosófica? Minha resposta é direta: apesar da ideia ser interessante ela é bastante ingênua sobre o que consiste na ideia de verdade. Tanto os grupos que são woke como os que são anti-woke têm uma ideia filosófica simplista porque não entendem o básico sobre a teoria da verdade.

Uma primeira concepção de verdade, muitas vezes chamada de “realismo”, aparece de forma exemplar na filosofia por meio da alegoria da caverna, onde se supõe a existência de uma realidade externa que poderia ser conhecida ou acessada. Trata-se da ideia de que existe algo “fora” do mundo aparente — algo que seria, em si, a própria verdade. Essa visão, embora tenha seu valor histórico e filosófico, costuma ser hoje considerada uma forma de “realismo ingênuo”, pois parte do pressuposto de que a verdade é uma espécie de coisa ou lugar fixo, uma entidade objetiva à espera de ser descoberta. No entanto, essa teoria enfrenta sérias dificuldades: afinal, não parece haver uma “verdade” isolada do mundo em que vivemos, algo exterior a ele. Tudo o que temos é este mundo, tal como se apresenta, e nele é que lidamos com o que chamamos de verdadeiro ou falso. Mas, se não há uma “verdade” fora do mundo, como então podemos compreender o que é verdade?

Hoje temos várias teorias da verdade disponíveis. Para começo de conversa, o cardápio é múltiplo, desde teorias realistas sofisticadas, passando pelo coerentismo, até o pragmatismo. Mas, nos restringindo apenas ao elemento realista, existem versões mais sofisticadas, como, por exemplo, a ideia de Bertrand Russell sobre a verdade. Se você gosta desse tema, veja o livro de Simon Blackburn Verdade: Um Guia para os perplexos, de 2005.

A proposta de Bertrand Russell sobre a verdade parte da constatação de que os seres humanos formulam crenças diversas, as quais são expressas por meio da linguagem e moldadas por diferentes contextos culturais. Em uma perspectiva realista, como a que Russell propõe, uma crença será considerada verdadeira se o conteúdo que ela expressa puder ser verificado na realidade — seja por meio da experiência empírica ou da análise conceitual. Por exemplo, ao afirmar “é preciso proteger a comunidade x ou y”, essa proposição só poderá ser considerada verdadeira se houver dados concretos e justificativas empíricas que a sustentem. Para Russell, não há uma realidade metafísica separada, à qual devemos “acessar” para alcançar a verdade — como sugeria a alegoria da caverna. O que há são crenças que formulamos e que precisam ser testadas diante do mundo em que vivemos. Não se trata, portanto, de despertar para uma realidade superior, mas de confrontar as nossas crenças com os fatos. Se alguém afirma que é necessário combater a desigualdade social, essa proposição não exige uma revelação externa, mas sim a verificação empírica: é preciso observar os dados, os indicadores sociais e econômicos, e ver se eles confirmam ou refutam a crença.

No fim, o problema é maior do que tomar uma pílula de qualquer cor. Isso acontece porque a luta pela correção de nossas crenças é uma tarefa muito mais difícil do que simplesmente despertar. A batalha é pela estupidez de nossas crenças.

Bruno Pettersen é professor e pesquisador no departamento de Filosofia da FAJE

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